CONDANSAÇÃO
Miriam Ximenes Pinho-Fuse*
Poesia é, nas palavras de Ezra Pound, a forma de expressão verbal mais condensada que existe. Condensar é concentrar, saturar, aglutinar. Freud fez da condensação - e do deslocamento - “os dois mestres artesãos” do funcionamento inconsciente. Aliás, na língua de Freud, a palavra Verdichtung [condensação] tem a graça de ser habitada pela poesia que, em alemão, se diz dichtung.
O sonho é uma magnífica estrutura condensada. É lacônico. Basta comparar o seu relato - que às vezes ocupa apenas algumas linhas - com a cota incalculável de associações derivadas.
Para a formação dos sonhos, o trabalho de condensação recorre a vários e curiosos meios. Um deles consiste em criar figuras sobreimpostas, como a Irma que no sonho da Injeção é uma mulher coletiva, um amalgamado de várias mulheres da vida de Freud.
Um outro é a criação de uma composição ideogrâmica, isto é, a junção de um conglomerado de ideias que podem compor um neologismo, uma nova palavra, como no sonho de Freud “Autodidasker”, vocábulo que reúne e embaralha os significantes “autor” e “autodidata” com os nomes do escritor alemão Lasker e o do irmão caçula de Freud, Alexander (Alex).
Os neologismos podem ser espontâneos ou calculados como na arte poética:
Neologismo
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
(Manuel Bandeira)
No poema, os significantes festejam, cantarolam, dançam, como no sonho. E o poeta fabricou o verbo “teadorar” para imprimir no nome da mulher amada o seu próprio eu apaixonado: Te-adoro, Te-odora. E assim procedeu também o Homem dos ratos que gerou, nas barbas do mais rígido processo de defesa, um neologismo sagrad’erótico que unifica em uma inocente fórmula de oração os vocábulos amém + o nome em anagrama da adorada Gisela + as gotas do seu sêmen (samen em alemão) brotando: Glejisamen, Glejisamen, Glejisamen...
A deformação propiciada pela condensação permite burlar a censura para alcançar o desejo numa operação metafórica que serve bem para expressar as coisas indizíveis, ao modo de um semi-dizer.
Um analisante um dia foi surpreendido pelo verbo “trabailar” que lhe saltou no meio de uma queixa sobre o seu trabalho atual, mecânico, desvitalizado. “Trabailar” expressava seu anseio por um ofício artístico que ainda não ousava enunciar.
“A palavra como ponto nodal de representações múltiplas, é como que predestinada à ambiguidade, e as neuroses (ideias obsessivas, fobias) aproveitam, de modo tão desinibido quanto no sonho, as vantagens que a palavra oferece para a condensação e o disfarce” (Freud, 1900).
As palavras, segue Freud, podem ser submetidas às mesmas combinações que as representações de coisas, são tratadas como se fossem objetos produzindo novos vocábulos e formas sintáticas artificiais e divertidas encontradas nos sonhos, chistes, alucinação verbal e ainda na arte verbal das crianças que fazem da palavra brinquedo, por puro deleite do som: uni-duni-tê, salamê minguê...
Lacan (1966) percebeu que se tratava aí do significante. Se o sonho é um enigma pictórico, um rébus que esconde uma bela e inspiradora frase, deve-se então, sugere Lacan, soletrá-lo ao pé da letra, isto é, no seu valor de significante e não de imagem pura. Inspirado por Jakobson quanto à estrutura bipolar da linguagem (correspondente às operações de seleção por similaridade e combinação por contiguidade), Lacan aproximou, segundo o princípio do dinamismo inconsciente, a condensação e o deslocamento dos polos metafóricos e metonímicos.
A condensação estaria para a metáfora e a metonímia para o deslocamento. Se a estrutura do significante está em ele ser articulado, na metonímia há o deslizamento de palavra em palavra, enquanto na metáfora uma palavra é tomada por outra.
Haveria na condensação uma concentração ou superposição de significantes em perfeita afinidade com a estrutura da poesia.
Indo mais além do inconsciente estruturado como uma linguagem, Lacan (1970) afrouxará esse laço entre condensação e metáfora no salto para o real em jogo no efeito de condensação que, ao partir do recalque, parte de um umbigo, “e traz o reaparecimento do impossível, a ser concebido como o limite pelo qual se instaura, através do simbólico, a categoria do real”. Um assunto que deixo para explorar em outra conversa.
E finalizo com um poema mínimo de Matsuo Bashô, o mestre da cabana da bananeira [bashô, em japonês], cujo talento produziu um novo estilo de haikai rompendo com o tom brincalhão que antes o caracterizava para elevá-lo à categoria de arte poética. Digo haikai ao modo ocidental, no Japão diz-se haiku para se referir à pequena composição de três versos cuja estrutura sonora básica é de 5-7-5 sílabas.
Este poema-pintura, aparentemente tão simples sobre uma rã que banha-se na lagoa, é certamente o haiku mais traduzido no mundo; no Brasil recebeu inúmeras versões de poetas famosos. Escolhi a brilhante transcriação de Haroldo de Campos (2010) que, para produzir o efeito de surpresa e frescor do original, fabrica o neologismo “salt’tomba”, atraindo nossos olhos e ouvidos:
Furu ike ya
kawazu tobikomu
mizu no oto
O velho tanque
rã salt’
tomba
rumor de água
Imagem de Matsuo Bashô [1644-1694] com a transcrição do poema sobre a rã
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Matsuo%2BBasho.jpg
[autor desconhecido século 18-19, Domínio Público, via Wikimedia Commons]
*Psicanalista membro FCL São PAulo
Referências
Campos, H. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 2010.
Freud, S. (1900). A interpretação dos sonhos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Lacan, J. (1966). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde de Freud”. Trad. Vera Ribeiro. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Lacan, J. (1970). Radiofonia. Trad. Vera Ribeiro. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
stylete lacaniano, ano 9, número 26,