editorial
Há algum tempo, apesar de sempre pensar a partir de onde estou – à beira desse rio –, quando disparo minha visão sobre outros lugares da Terra, as cartografias sonhadas que vejo incluem aquela imagem fantástica do astronauta que, olhando do céu, exclamou: “A terra é azul!”. O planeta é mesmo maravilhoso e é abraçado, em várias tradições de povos ameríndios – da Terra do Fogo ao Alasca –, por uma poética permeada de sentido maternal.
(Ailton Krenak – Futuro Ancestral, 2022)
Acho que vocês deveriam sonhar a terra, pois ela tem coração e respira.
(Davi Kopenawa – A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, 2015)
O mundo como o conhecemos sob o peito do céu parece em ruínas. Este ano de 2024, somente no Brasil, para além das violências e desigualdades existentes nas cidades e campos, nos fez experimentar situações catastróficas decorrentes do que denominamos “crise climática”. Muitos morreram, perderam suas casas, seus trabalhos, suas escolas, seus mundos. Esta própria forma de nomearmos como “crise do meio ambiente” as enchentes, os incêndios e outras formas que agridem e exterminam nós humanos, parece evidenciar uma epistemologia dual que provoca fissuras, para além dos furos que nos constituem como sujeitos.
Ao trazer para este editorial as palavras de duas lideranças indígenas brasileiras, evocamos o clamor dos povos ameríndios para a coimplicação na construção do nosso destino. Não se trata de meio ambiente de um lado, como as coisas da natureza não humana e, de outro, nós humanos, já tão ontologicamente diversos, mas da urgência de nossa época em frear o mito de uma civilização que vem se constituindo pela ideia do Estado Nacional, do Um, que generaliza, segrega, assujeita e extermina a diversidade.
Com estas palavras, deixamos aqui também o nosso clamor em direção a uma Escola de Psicanálise que tem buscado esta coimplicação. Ao mesmo tempo, nos despedimos, por ora, da função que conduzimos na Revista Stylete no último biênio. Uma publicação que nos implica de diversos modos na psicanálise, na arte, na filosofia e na política.
Os trabalhos apresentados neste número refletem, cada um com seu e(stylo), reflexões sobre memórias, o infantil, o ignoródio, a borda, a neurose. Em O sebo e o divã, André Falcão nos brinda com a reflexão sobre a busca de algum tipo de verdade escondida. Claudia Saldanha recorda, em A não-toda se escreve na margem, o ensinamento de Lacan sobre a impossibilidade da relação sexual e que o efeito feminizante que aproxima a carta/letra do feminino é uma pista do laço entre a letra e a não-toda que estaria por vir. Na bela indagação sobre a recriação de uma lembrança infantil, Georgina Cerquise traz Uma criação poética na qual elabora a estrutura metafórica em Lacan e a força criadora do sujeito. Outra bela obra poética é escrita por Isloany Machado em Obsessísifo e as pedras no meio do caminho. Margarida Eugenia, em Escritura freudiana do sonho: uma leitura, apresenta a escrita como caminho da manutenção da singularidade que atravessa o desejo e estabelece laços. A partir de sua inquietação a respeito das manifestações de rua em 2013 no Brasil, em O que anima o fascismo?, Maria Paula Teperino indaga sobre os traços de identificação entre aqueles que compuseram uma massa raivosa, heterogênea, que clamava pelo retorno de um “regime de exceção”. Baseada em reflexões de Freud e outros autores contemporâneos, ela propõe a hipótese do ressentimento e da fascinação.
Em nossa galeria apresentamos Fava da Silva. Carioca do Conjunto de Favelas da Maré, em seu trabalho explora questões relacionadas ao contexto político-social brasileiro a partir de sua vivência como mulher, artista e residente da favela. Tem uma longa trajetória nacional no estudo de artes desde o Parque Lage, Galeria SESC de Duque de Caxias e outras galerias, bem como internacional, passando pela Galeria Camarones e Lanzallamas em Buenos Aires, Nova York, entre outras. Em junho deste ano inaugurou a exposição individual “Maré dos Sonhos Intranquilos”, da qual algumas de suas obras foram generosamente autorizadas para compor este número da Stylete. Premiada por edital publico de incentivo à cultura, realizou residências artísticas em Portugal e na Argentina. Atualmente é bacharel e mestre em cinema e artista da Escola Livre de Artes do Galpão Bela Maré. Inclui no seu percurso o mestrado em andamento no PPGArtes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Kátia Sento Sé Mello – FCL Rio de Janeiro
(Conselho Editorial Revista Stylete – biênio 2023-2024)
1 Na língua Yanomami significa o firmamento, a parte visível do céu, para além da qual habitam os espíritos (Kopenawa, D. e Albert, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. 1ª edição, São Paulo, Companhia das Letras, 2015).
styelete lacaniano. ano 9, número 27