Hiatus Irrationnalis (Panta Rei)
Jacques Lacan, 1929
Tradução Alexandre Marzullo*
Choses que coule en vous la sueur ou la sève,
Formes, que vous naissiez de la forge ou du sang,
Votre torrent n’est pas plus dense que mon rêve,
Et si je ne vous bats d’un désir incessant,
Je traverse votre eau, je tombe vers la grève
Où m’attire le poids de mon démon pensant;
Seul il heurte au sol dur sur quoi l’être s’élève,
Le mal aveugle et sourd, le dieu privé de sens.
Mais, sitôt que tout verbe a péri dans ma gorge,
Choses qui jaillissez du sang ou de la forge,
Nature, je me perds au flux d’un élément:
Celui qui couve en moi, le même vous soulève,
Formes que coule en vous la sueur ou la sève,
C’est le feu qui me fait votre immortel amant.
***
Coisas que correm à tua seiva ou suor,
Formas que à forja ou sangue nascem em ti,
Tua tormenta é menos densa que meu sonho,
E se não te abate meu desejo incessante,
Tua água atravesso, e desabo em tua sebe
Sob o empuxo de meu demônio pensante;
Só, no piso duro sobre o qual a letra s’eleva,
O mal cego e surdo, o deus que nada sabe.
Mas se todo verbo à minha glote se exangue,
Coisas que à forja ou sangue nascem em ti,
Natureza - perco-me num fluxo radiante:
Aquilo que se acova em mim, a ti soergue;
Formas que à tua seiva ou suor ascendem,
É o fogo que me faz teu imortal amante.
Há uma intrincada rede de alusões filosóficas envolvendo o soneto do jovem Jacques Lacan. Escrito em 1929, o poema foi inicialmente nomeado “Panta Rei” (“tudo flui”), título que alude à filosofia de Heráclito de Éfeso (séc V a.C.), e que reforça a imagem de fluxo que o leitor encontra em seus versos. Eventualmente, o soneto foi publicado em 1933 na revista surrealista Cahiers d’Art, sendo rebatizado como “Hiatus Irrationnalis” (“hiato irracional”), título que por sua vez também tem matriz filosófica: hiatus irrationnalis é uma expressão oriunda da filosofia idealista de Fichte (1804), e designa a evidência de um “abismo transcendental” entre as condições de inteligibilidade da razão e a experiência da contingencialidade fática do sujeito[1]: uma espécie de vão intrespassável entre pensamento e realidade. Significa dizer: diante da razão, trata-se da descoberta de um lugar onde não se pensa; logo, um lugar onde não se concebe consciência. A possibilidade de uma correlação, sutil ou explícita, entre o “Hiatus Irrationnalis” de Fichte e o Inconsciente na psicanálise lacaniana já foi sugerida por autores como Ingrid Porto de Figueiredo e Christian Dunker.[2]
A respeito da tradução que ofereço, o leitor poderá notar que não se trata de uma tradução pautada unicamente pela transposição semântica. Antes, posicionando-me mais próximo de uma “transcriação” a la Haroldo de Campos, objetivei uma tradução preocupada com a literalidade da letra[3] poética no original, no sentido mesmo em que Antoine Berman, filósofo e pensador da tradução, propõe para o termo. Para Berman (um rigoroso leitor de Lacan, aliás) a “letra” de um texto é o efeito do jogo de significantes que foram ali dispostos, tal qual formalmente reunidos, conjugados e apresentados pelo seu autor (Cf. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo, 2012, p. 21). De tal modo, para a consideração da “letra” de um texto, para sua elucidação, temos que observar os significantes que ali a evocam, na totalidade de seu impacto semântico, linguístico, poético, estético. Qual seja: a letra de um texto é a resultante, ou o efeito, das possibilidades de relacionamento entre seus significantes.
A partir daí, podemos compreender como o tradutor procede na angústia de seu ato (tradutório) em busca da letra, ingressando em um ir-e-vir circulante, reflexivo, insistente diante do texto original: ele observa, analisa, interpreta o texto, e então reconsidera; procura captar - e capturar -, no texto, pelo texto, e para o texto, o jogo fonético, rítmico e semântico oferecido pelo longínquo autor em seu trabalho de linguagem originário. Na mesma toada, podemos compreender também que o sentido do texto a ser traduzido - o paradigma de toda tradução convencional - é apenas, na realidade, uma parte de sua experiência. E se o sentido não pode ser abandonado, é apenas porque aferra-se, obstinadamente, àquilo que em seu conjunto produz; isto é, “a tradução descobre [...] que letra e sentido são, ao mesmo tempo, dissociáveis e indissociáveis” (Berman, 2012, p. 55). Razão pela qual Antoine Berman cunhou o axioma de que “traduzir é traduzir-a-letra”, um axioma ao qual alinho-me, à minha própria maneira.[4]
Para traduzir o soneto do jovem Lacan, abdiquei da métrica fixa e das rimas alternadas. No entanto, busquei manter a sonoridade dos versos, aproximando os vocábulos franceses aos portugueses sempre que possível, criando um jogo toante e especular com o original. Esse jogo, melhor experimentado pela declamação do poema do que por sua leitura silenciosa, se torna (pela declamação) um claro índice de uma das imagens mais enfáticas utilizadas pelo poeta Lacan em seu poema: a ideia de fluxo. Com isto, quero dizer que o leitor se vê caudalosamente guiado pelo som e pelas imagens evocadas pelo poema até o destino fatal do texto: a descoberta do fogo no último verso, fogo que celebra o protagonista lírico do poema como imortal amante.
Para efetivar tal situação em minha tradução, por quatro vezes tomei escolhas assumidamente heterodoxas em relação ao original, mas unicamente para preservar sua violência, sua estrangeiridade à recepção (tanto em língua francesa, quanto enquanto tradução). Gostaria de comentá-las a seguir.
1) No verso 3 da primeira estrofe, traduzi torrent por “tormenta”, ignorando a possibilidade mais evidente de tradução (“torrente”). Primeiro, porque em língua portuguesa “tormenta” me parece mais sugestivo de uma violência pluvial ou aquática, tal como a construção do verso lacaniano parece apontar; e depois porque sua tonicidade silábica, em comparação com a palavra “torrente”, comunica-se melhor com os vocábulos seguintes (talvez seja sutil a diferença, mas ainda assim persista; como via de prova, peço que o leitor declame em voz alta: “sua tormenta é menos densa”, e compare com a alternativa “sua torrente é menos densa”, considerando a enunciação das vogais);
2) A segunda alteração é certamente a mais radical: no verso 7, segunda estrofe, traduzi l’être (“ser”) pelo quase homônimo (em língua portuguesa) letra, sabendo perfeitamente que a tradução adequada não é essa. Mas considero justificada minha opção pelo fato de que o sentido do verso não está alterado; muito pelo contrário, sua tessitura metafísica permanece a mesma, e aliás é até mesmo reforçada pelo vocábulo “letra”, pois o poema, de fato, sugere uma dimensão de linguagem entre o psiquismo e a ontologia (vide a estrofe 3), entre o lirismo romântico (e uma ideia de sujeito impelido à ação) e uma ideia espinosista de saber (vide a palavra, que grifei propositadamente, “natureza”). Ademais, utilizar “letra”, ao invés de “ser”, não somente faz um reforço, mais uma vez, à “violência” da escrita no original (em seu empuxo, ao mesmo tempo incendiário e fluvial, à existência) como tem também a serendipidade de comunicar-se com o famoso conceito de “letra” no posterior ensino lacaniano. E aqui, se cometo um delito à tradução filológica, o faço amparado no entendimento de que o poema, como num sonho, conjuga temporalidades, e fala mais alto do que o saber de seu autor. Ora, por acaso competiria a mim impedir a prevalência do poema e de seus saberes sobre o fato histórico, até onde o alcanço? Julgo que não: não cabe a mim impedir ou delimitar o saber poético que vislumbro; compete-me unicamente ouvi-lo, testemunhá-lo e situá-lo, por ética, no campo que ele me pede: no próprio poético que inaugura.
3) Outra alteração dramática: no verso 11, terceira estrofe, inseri a palavra radiante, preferindo-a ao invés do vocábulo “elemento” que substituiria mais literalmente (semanticamente falando) a imagem relativamente fraca e anódina de expressão francesa “d’un élément”. Mas ocorre que o qualificativo “radiante”, adjetivando o substantivo “fluxo”, comunica-se de modo inteiramente eloquente com a imagem do fogo que fecha o soneto (comunicação já pretendida, ressalte-se, com a ideia de um elemental na língua francesa). E conjuga-se, contextual e foneticamente, com a palavra “amante”, último vocábulo do texto, tanto no original quanto na tradução.
4) E por fim, na última estrofe, uma situação dupla: “soergue” e “ascendem” traduzem as palavras “soulève” e “coule”. A relação entre “soergue” e “soulève” (“levanta”, literalmente) é sonora e silabicamente proporcional entre si, e também não há grandes danos semânticos, muito pelo contrário: fica preservado o sentido no contexto pretendido. Mas menos corriqueira é a relação entre “ascendem” e “coule” (“correm”). Cabe no entanto perguntar: de que “correr” se trata? Ou ainda: que “coule” é esse? No verso anterior, vimos que há algo no íntimo da interlocutora do poeta, e esse algo, compartilhado pelo protagonista lírico do soneto, (se) levanta. Ou seja: esse “correr” das formas é um “correr” que está “levantado”, ou seja, que está “soerguido” por aquilo mesmo que queima e flui no íntimo do protagonista e de sua interlocutora: são formas que sobem, via seiva ou suor, donde a escolha pela palavra “ascende”, como em uma “ascese”, mas jogando, claro, com a homofonia de “acende”, acendendo o obscuro do poema. O que perco em rimas, ganho em ênfase (soerguer; ascender). E é assim que, enquanto o poema ascende, o leitor descende até seu final: é o fogo que me faz teu imortal amante.
Aqui encerro meu texto. Sobre as demais alterações que cometi, menos incisivas, tal como num prefácio de Cervantes, “deixo-as à sagacidade do leitor e ao seu bom ou mau julgamento”. Para uma tradução do soneto lacaniano em língua portuguesa, sob outra perspectiva tradutiva, mais amparada na métrica fixa e na disposição formal do soneto, remeto à realizada pelo também psicanalista e tradutor Paulo Sergio de Souza Jr., publicada em seu site Derivas Analíticas: https://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/hiatus. Caso seja uma opção para o leitor, há uma tradução em língua italiana mais próxima às minhas escolhas (embora eu não a tenha conhecido senão após realizar minha própria tradução do soneto); está no sucinto artigo (em italiano): http://www.psicoanalisiartesocieta.com/hiatus-irrationalis-poesia-j-lacan/
*Psicanalista membro FCL Rio de Janeiro
[1] Faço remissão ao interessante e recente artigo de G. Anthony Bruno (2021) sobre a recepção do conceito de Fichte na Alemanha pré-heideggeriana: Hiatus Irrationalis: Lask's Fateful Misreading of Fichte. In: European Journal of Philosophy, 1–19. https://doi.org/10.1111/ejop.12719
[2] Cf. Ingrid Porto de Figueiredo, A verdade e a interpretação poética na psicanálise lacaniana. In: Stylus: Revista de Psicanálise Rio de Janeiro, n. 37, pp. 67-79, dezembro de 2018; Christian Ingo Lenz Dunker, Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud: uma hipótese de leitura – São Paulo: Instituto Langage, 2019.
[3] A literalidade da letra não deve ser confundida com a literalidade semântica de um texto. Nas palavras de Berman, “traduzir não é buscar equivalências [semânticas].
[4] Atentemos ao fato de que esse pensamento sobre tradução abre uma ferida profunda na ideia de uma Verdade universal. Ora, a ideia de Verdade subjaz, maliciosa, no privilégio que se oferece, via de regra, a um texto original em relação à sua tradução. Não alinho-me a essa perspectiva; ressalto a primazia da traduzibilidade. Não se trata, com isso, de negar a possibilidade de uma verdade, ou de um saber, mas sim de situá-lo dentro de sua própria inteligibilidade, o que não é possível sem a experiência de uma alteridade. Isso é o que chamo de tradução, pura e simplesmente: a inauguração de um saber com efeito de verdade. Notadamente, nos termos em que coloco o conceito, não há tradução sem poesia, bem como não há tradução sem pensamento, e vice-versa.
stylete lacaniano, ano 9, número 26,