Especulações psicanalíticas sobre o choro a partir da obra de Dorival Caymmi
Eduardo Pascottini*
“Vamos chamar o vento”.
Um assoviar melódico põe em prática a proposta que inaugura “O Vento”, canção de Dorival Caymmi. Sabe-se que, no assovio, o ar interno que sopra para mobilizar o ar de fora, juntando-se a este, não produz sons através das cordas vocais, mas em contato com os lábios. Ecoando uma crença popular, este ato de chamar o vento com o folego dos pulmões e a graça dos pássaro possivelmente era realizado pelos pescadores nos quais Caymmi tanto se inspirou.
Em seguida, a mesma cadeia significante estrutura as duas estrofes principais da canção: vento/vela/barco/gente/peixe/dinheiro.
Entretanto, a segunda estrofe sofre uma leve alteração em relação à primeira, emulando o tipo de equivocidade por meio da qual, segundo a teoria psicanalítica, o inconsciente se revela. Os versos iniciais passam de “Vento que dá na vela / Vela que leva o barco” para “Vento que dá na vela / Vento que vira o barco”. Do vento ao dinheiro, o resultado é o mesmo e, que haja obstáculos no intento de um sujeito em se lançar a seus objetos de desejo, é mais do que esperado. Cabe apenas nos perguntarmos desde logo por que Caymmi inclui esse aspecto – e de maneira tão sub-reptícia – na fantasia que sua canção expressa?
Abordemos esta questão a partir de uma hipótese. Percalços a parte, a conexão entre “vento” e “dinheiro” permite correlacionar o primeiro à noção de pulsão de vida. A fantasia faz a ponte entre o real e o simbólico-imaginário de forma que discursivamente o vento é esta força que, entoada de dentro para fora, pode aproximar o sujeito / pescador de seus objetos de satisfação, permitindo uma descarga libidinal.
Mas quem faz a proposta inaugural (chamar o vento)? Quem realiza o ato proposto (assovio)? Em si mesmas, tais perguntas indicam que ainda não se percebe nítida a representação de um “Eu” que entoa o discurso. Qual é a máscara que canaliza o sopro deste personagem? Logo, podemos substituir esse alguém indefinido e fracionado, que se coletiviza ao propor “vamos (nós) chamar o vento”, pelo significante “gente”, presente na canção. Com isso, temos a ampliação da cadeia a partir do início:
gente/vento/vela/barco/gente/peixe/dinheiro.
Com toda carga de satisfação delirante, o ato fantasioso de chamar o vento supostamente produz efeitos na realidade quando este alguém não-unificado sopra vento interno emitindo uma melodia sem semântica, como já destacamos, um ato expressivo anterior à fala simbólica. Isto é, temos uma conexão delirante com a realidade vivenciada por um eu fragmentado, que produz um ato expressivo da ordem do som sem fala, da ordem, portanto, do choro!
Se a satisfação é sinônimo de uma descarga libidinal que alivia a tensão em ato, o vento equivale aqui ao ato expressivo motivado pela libido ainda mal dominada por um Eu em formação: o choro. Assim sendo, o que a representação do vento na obra de Caymmi pode dizer sobre a relação entre choro e pulsão de vida?
Avançando atentos aos aspectos formais que caracterizam as formações do inconsciente, podemos pensar não apenas no vento como a representação do choro na fantasia inconsciente de Caymmi, mas no peixe, alimento retirado do corpo do mar (!), como objeto causa de desejo. Perceba que o percurso sai de “gente” em choro (vento) e retorna a “gente” em satisfação (dinheiro), contornando o peixe, de forma a desempenhar o curso circular da pulsão, que Lacan apresenta no seminário 11 para caracterizar a aparição do sujeito no campo do outro.
Mas um obstáculo parece desacreditar nossa hipótese, pois, em outros momentos, o mesmo vento aqui relacionado à pulsão de vida, é descrito por Caymmi como ameaçador e mortífero. Ademais não nos esqueçamos que, por meio de um “equívoco calculado”, a segunda parte de “O Vento” já apontava para algo semelhante, de maneira que, ao permitir criativamente que o elemento ao mesmo tempo “leve” e “vire” o barco, o compositor está paradoxalmente igualando o registro da ação à sua própria negação: “o vento virou o barco que leva a gente, que leva o peixe, que dá dinheiro.” Como não notar nesta possibilidade impossível de capturar o peixe após a agência do vento uma representação da posição do sujeito frente ao desejo na neurose obsessiva?
Mas permanece a dúvida: como algo que aponta para a função integrativa e aproximativa da pulsão de vida (primeira parte de “O Vento” e, acrescento, segunda parte de “Saudade de Itapoã”) pode remeter ao perigo de desfragmentação que há na pulsão de morte (“Temporal”, “Noite de Temporal” e “A Jangada Voltou Só”)?
Um início de resposta está em associar o “vento” ao choro do bebê, um ato expressivo que remete a fases iniciais da constituição subjetiva, quando pulsão de vida e pulsão de morte não se distinguem bem diante de um referencial egoico incipiente. Com a alteração de um único verso, algo da ordem do perigo surge no ato, antes benéfico, de chamar / soprar o vento visando o seu auxílio na pesca. O mesmo observa-se no choro, expressão de desprazer sentida pelo sujeito que, uma vez consequente, isto é, capaz de motivar o amparo do cuidador / Outro, se configura como demanda; mas, por outro lado, quando não atendido, conservando assim a tensão orgânica que o Eu em formação não é capaz de dominar e conduzir, gera a angustia do desamparo, equivalente ao trauma de um ataque externo. A resposta a este ato expressivo (o mais próximo possível do real) determina a entrada do sujeito na linguagem. E, se falamos porque pedimos, há em toda fala um choro escamoteado, que revela sua articulação entre os três registros nesta fala especial que é o canto, pois, assim como o inconsciente, a música é uma cadeia de significantes estruturada como linguagem.
Há no repertório de Caymmi outra canção cujo título tem a estrutura de “O Vento”: “O Mar”. O objeto causa do desejo é o mesmo no discurso de ambas: o peixe, que o pescador sai em captura, mas que agora rói o seu corpo inerte após o esforço mal sucedido. Quem realiza o ato não é mais um alguém indefinido (“gente”): é Pedro. Da mesma forma, o desejo que motivou o ato ganha sentido pelo lamento de uma personagem com contornos mais nítidos: Rosinha de Chica.
Mas e quanto ao mar? A partir do que o discurso da canção enuncia e de sua estrutura circular, podemos dizê-lo – em um tipo de construção em análise – indiferente. Diante do fim trágico de Pedro nas ondas do mar, a constatação de que este Outro permanece sempre o mesmo em seu movimento arrasador e, ainda assim, bonito. Aliás, que a descrição do mar articule universos semânticos tão distantes, caracterizando assim uma atividade destrutiva e ruidosa (“quebra na praia”) como atraente e sublime (“bonito”), produz um efeito de soma zero. Nem bom, nem mau, o mar é. Na fantasia de Caymmi, que o pescador morra em contato com o mar é resultado de um desejo do qual este último não toma parte. Enquanto Rosinha de Chica, “bem de terra”, fica na beira da praia a lamentar a morte de Pedro, conferindo, esta sim, sentido ao desejo frustrado do pescador, “o mar é o mar é o mar”.
Significante estratégico, “indiferente” ocorre de forma literal em momentos nos quais Caymmi descreve desejo e angústia de separação, corroborando assim a coincidência entre uma fantasia de castração e uma fantasia de alienação no Outro. “Indiferença” produz que, de um lado, assim como no dicionário, o termo seja encarado como a propriedade de quem não se importa e, de outro, seguindo as condensações e deslocamentos do inconsciente, como o que é o contrário da diferença, portanto, o que é igual, inseparável. No primeiro, temos a percepção da não formação de laço com o Outro, que não amparou (indiferença) a manifestação de vida, o grito de necessidade. No segundo, temos o desejo de voltar a formar “Um com o Outro” (indiferença), necessariamente reprimindo a agressividade, faísca inicial da constituição subjetiva. Eis o choro de Caymmi, tão próximo do gozo, que suas canções expressam.
* Psicanalista, membro do Fórum Rio
stylete lacaniano, ano 8, número 24,