O feminino nas entrelinhas: o não-todo no corpo e no texto
Wildicleia Oliveira Lopes*
A psicanálise ratifica com intensa frequência seu compromisso com a verdade do sujeito. Os psicanalistas que se aventuram no mundo da escrita avançam nas produções teóricas da psicanálise para sinalizar a singularidade do desejo, as camadas encobertas do saber e a incompletude da verdade, já que a partir de seus estudos sabemos que não há desejo de todos, transparência do saber e verdade completa, toda. Nos constituímos enquanto sujeitos por um desejo que, a priori, vem do Outro. Necessariamente. Amamos o amor do outro, sonhamos seus sonhos, giramos em torno do que supomos ser seu mundo, artifícios magníficos da fantasia. Um pequeno ser e seu Outro – este Outro, que como aprendemos com Lacan, faz referência a um lugar que no inconsciente oferta morada aos ditos importantes de uma vida. E assim, seguem as demandas que vão se desdobrando no transitar das existências.
Ao nos depararmos com a ameaça da castração, nos dividimos. A língua que outrora encontrava no Outro tradução à sua revelia, passa a querer dizer. Disso que se diz, muito não se entende, e assim se montam e se amontoam os humanos, nas várias possibilidades de se estruturarem ao se defrontarem consigo mesmos e o mundo. E a linguagem então, se presenti-ficou. Seus efeitos passaram a denunciar os impasses das relações, as falhas na comunicação foram apresentando as perdas que em nosso caminho vão se refletindo nas cadeias significantes, contornando tantas mortes que pela palavra nos ascendem à vida, a qualquer faísca de vida. Palavras que fazem borda no vazio, que ofertam vazão ao nosso desejo, nossa singularidade. E do vão – que de nada tem em vão – nós vamos. Tropeçamos, caímos, levantamo-nos, amamos, sofremos, criamos... escrevemos. Seguimos às voltas, movidos pelo movimento insaciável da pulsão, que ora nos conduz à vida, ora nos conduz à morte, mas que não cessa. Do real à realidade, do insabido ao que alcançamos saber: a verdade não-toda, mas com direito de se dizer própria. Pois, (...) “é com aparecimento da linguagem que emerge a dimensão da verdade.” (LACAN, 1957).
Já estamos advertidos por Lacan de que a linguagem tem seus limites, ela não alcança o real, seu trabalho é bordejá-lo. Da língua à letra, da letra à palavra, da palavra ao humano, do humano à falta. Essa é a nossa ferida, que como nos lembra Denise Mourano (2010), não nos curamos nunca: a ferida de sermos humanos. No entanto, através do abraço carinhoso e caloroso da psicanálise com as artes, passamos a compreender que uma dor pode criar coisas belas. Tom Jobim e Vinícius de Moraes nos atestaram isso, afagando nossas feridas com o que as suas próprias foram capazes de inventar. Pois, tomando de empréstimo suas palavras, presentes na música Eu não existo sem você (1958): “(...) um poeta só é bem grande se sofrer.” O mais tenro amor que um dia já se demandou e que no desencontro se frustrou, torna-se livro, música, poema ... arte. Não somos capazes de alcançar o que os escritores e/ou artistas quiseram, por suas próprias verdades, escrever ou produzir, porém, disto certamente alcançamos algo que faz eco no que não sabemos, mas que de nós faz parte. Como afirma Alain Didier-Weill (2014): “o impacto desse ponto de báscula sobre o Ouvinte está em realizar a inverossímil conjunção entre o que ele pode ouvir e o que pode dizer: ponto de conjunção de onde a palavra do mundo que lhe fala se torna ao mesmo tempo sua palavra de Sujeito.”
As verdades meio ditas, que na hiância de cada um, se confluem e dão sentido. Fazem sentir. Tão misteriosas, encobertas com seus véus e suas máscaras. Tão femininas. Se nos apoiarmos no que Lacan nos diz sobre a mulher, que se conta uma a uma, nos aproximamos também sobre o que ele nos fala quanto à verdade. Compreendendo-a como aquela que “situa-se ali onde o sujeito nada pode captar se não a própria subjetividade que constitui um Outro como absoluto.” (LACAN, 1955). Ambas, mulher e verdade, de todo não podem ser ditas. Os seres falantes que experimentam as inquietações de um querer saber que esbarra na impossibilidade de uma definição – já que a infinidade de significantes pode dizer-lhes em suas singularidades, mas não são capazes de responder-lhes sobre seu ser mulher no mundo – conjugam com as infinitas faces do que em psicanálise pensamos por verdade. Aquela, oriunda de um saber insabido, não confessado às luzes da consciência. Uma outra cena, onde as cartas são produzidas, encontrando sempre seus destinos. (LACAN, 1955).
Quais os mistérios podemos descobrir sobre uma mulher? O que há nas produções dos artistas que nos causam tantos afetos, de modos e tamanhos tão diferentes? Freud, em meados de 1932, estava às voltas com essas questões. Ele sabia que nestas posições de sujeitos, havia um saber encoberto e revelado nos atos e nas palavras. Lacan validou a curiosa aposta de Freud, discorreu sobre as ficções da vida humana e sobre quanto saber há em um artista, um escritor e sua obra. Tratando assim, dessa criação/escrita que não se fecha, não se reduz a um significante. Trans-borda e encontra nos outros com quem se depara, um sentido único de ser. Está aí, a posição feminina que não se reduz a uma significância fálica com a função de recobrir a falta, mas, explora o vazio que marca o Outro como faltante. As mulheres e os artistas – mais especificamente aqui os escritores –, em suas posições não-toda, se servem constantemente dos adornos, elas no corpo e eles (escritores/artistas) nos textos. Ferreira Gullar, com sua escrita tão adornada, nos presenteia com o feminino transbordando em suas palavras publicadas no livro Na vertigem do dia, em seu poema Traduzir-se (1980):
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
(...)
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?"
Sem que intencionalmente se proponha a alcançar os ouvidos e o coração de um leitor, a escrita chega, circula, dá seus tons. Se lança a ser para alguém, na beleza de uma alteridade feminina, enlouquecida de amor. Pois, como nos diz Elisabeth da Rocha Miranda (2017): “Quando se trata de amor, as mulheres são transgressoras e vivem o descompasso entre a cultura e o laço social.” Elas e as artes, nos mostram com tamanho encantamento e intensidade o quanto vivemos entre as margens e as profundezas. No entre, ou, nas entrelinhas.
* Psicanalista, membro dos Fóruns Aracaju e Alagoas (em formação)
Referências
LACAN, Jacques. “O seminário sobre” A carta roubada”” (1955). In: LACAN, Jacques. Escritos. v. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 17-22.
LACAN, Jacques. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957). In: LACAN, Jacques. Escritos. v. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p 529.
MIRANDA, Elisabeth da Rocha. Desarrazoadas: devastação e êxtase. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2017. p. 15.
MAURANO, Denise. Para que serve a psicanálise? 3.ed.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. p. 12.
DIDIER-WEILL, Alain. A nota azul: de quatro tempos subjetivantes na música. In: DIDIER-WEILL, Alain. Nota azul: Freud, Lacan e a arte. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014. p. 15.
stylete lacaniano. ano 8. número 24.