Lógica booleana, nó borromeano e a clínica
Sheila Skitnevsky Finger*
Ao longo do cartel Lógica e Topologia[i], estudamos o livro Logicomix[ii] e o Seminário 21[iii] de Lacan. Um cartel semeia produtos quando ecoa e reverbera em várias elaborações, não apenas no escrito considerado como produto.
Das elaborações, uma questão: em O Aturdito[iv] Lacan apresenta a direção do tratamento representada na topologia de superfície: do toro neurótico, através de cortes e costuras, à construção e corte do crosscap separação da fantasia em banda de moebius ($) e rodela esférica (obj a). O que não estava ainda nesta concepção topológica que o fez seguir além, para a topologia de nós? Consenso: se a topologia de superfície aponta para a continuidade do inconsciente estruturado como linguagem, os nós incluem de forma inequívoca o vazio, o furo. São passos de Lacan tanto na clínica quanto na teoria.
Ao revisitar o cap 13 do seminário 21, para encontro com colegas membros do fórum SP, vislumbrei uma volta a mais: Lacan segue os passos de George Boole, da lógica proposicional à representação algébrica, e propõe um caminho para a lógica do não-todo, articulando lógica matemática e nós borromeanos.
Como acompanhamos em Logicomix, na definição aristotélica, lógica é um raciocínio novo e necessário, com conclusões irrefutáveis. A partir de 2 afirmações já conhecidas, produz-se uma conclusão nova e necessária. Ex: todos os homens são mortais; Sócrates é um homem, portanto Sócrates é mortal. Foi isso que Leibniz transformou em um sistema simbólico; e Boole levou adiante, criando uma lógica algébrica binária, 0 ou 1; V ou F.
Lógica: é um sistema, é uma ferramenta, você decide como vai usá-la[v].
Com Logicomix, a lógica de forma cômica: ao visitar Frege, Russell o encontra no jardim sem saber quem era. Diálogo:
Com licença, esta é a casa do professor Frege? Não, este é o jardim dele. A Casa fica ali. O professor está em casa? Não, está no jardim. Eu sou o professor. E o senhor?
Frege dialoga com Russell:
De Aristóteles a Boole, os lógicos usam silogismos como Sócrates é um homem. Mas se queremos estudar a matemática em si, da perspectiva da lógica, precisamos de variáveis, como X é um homem.
Lógica proposicional[vi]: estuda operações envolvendo proposições:
Proposição: sentença declarativa afirmativa ou negativa, com valor lógico V ou F:
-
Todos os homens são mortais à sentença declarativa afirmativa. Por ser verdadeira, seu valor lógico é V.
-
7+5 = 10 à sentença declarativa afirmativa. Por ser falsa, seu valor lógico é F.
-
x – 2 = 5 à Não é proposição, pois não se sabe o valor de x. Para torná-la proposição, há que incluir quantificadores: para todo x, pertencente a números inteiros, x - 2 = 5. Aí temos proposição, com valor lógico F, pois só 7 é verdadeiro.
3 princípios regem Proposições:
-
da Identidade: Uma proposição V é Verdadeira, e uma proposição F é Falsa
-
do Terceiro Excluído: Uma proposição é V ou F não existindo 3ª possibilidade
-
da Não-Contradição: Uma proposição não pode ser V e F simultaneamente
Da lógica proposicional à lógica booleana binária [vii]:
Num labirinto[viii]:
Um caminho X possui valor 1 se leva à saída; OU valor 0 (zero) se não leva. Se caminho X tem valor 1 até certo ponto e depois se bifurca em Y e Z, escrevemos a possibilidade de continuação correta:
X = 1; Y v Z = 1 à Se Y = 1 ou Z = 1
Ou seja, X segue com Y ou Z, e mantém seu valor 1 se Y ou Z tiver valor 1, ou se ambos tiverem. Mas cai para 0 se tanto Y como Z tiverem valor 0
Os números 0 e 1 perdem conotação quantitativa e adquirem valor de verdade:
1 = V; 0 = F.
Há 2 formas de representar este sistema de valor:
e, representa multiplicação;
ou, representa adição.
Por quê? Para que os valores se mantenham apenas 0 e 1:
No labirinto: Se Y = 1 e Z = 1, ao representar-se e pela multiplicação, tem-se:
1 x 1 = 1. Há + de 1 caminho para fora
Porém, se Y = 1 mas Z = 0, tem-se Z ou Y = 1; representado pela adição
1 + 0 = 1. Há pelo menos 1 caminho para fora
Se ambos forem 0: 0 x 0 ou 0 + 0 = 0: afirmações verdadeiras.
Ao contrário, se usarmos multiplicação, o 1 caminho existente não pode ser registrado: 0 x 1 = 0: afirmação falsa.
Voltemos a Lacan[ix]: dizer Os não-tolos vagueiam (errent) não quer dizer que os tolos não erram. Se partimos do que se propõe como uma afirmação:
Se não-tolos erram à Não-não-tolos poderiam não errar?
Se x é V à x (lê-se não-X) é o que não está contido no universo como x: é não-x
Se tolo = x; Não-tolos = não x
Então negar a negação, não-não-tolo seria = tolo?
Isso apenas supõe, e não supõe nada mais, que há um universo; que se posso avançar que o universo, todo enunciado o divide [entre x e não-x]; que se possa dizer O homem, e que, ao dizê-lo, todo o resto torna-se não-homem.
Lacan escreve na lousa[x]: x.(1-x) = 0
Onde (1-x) é a escrita algébrica de x barrado, ou não-x.
Lê-se nesta notação: x multiplicado por (1-x) igual a zero. Para além do x e não-x, nada, zero. Só há x e não-x. Esse e representa multiplicação, como vimos; senão, daria 1: haveria algo além da afirmação de verdade. É o que Lacan vai propor adiante, quando questiona: por que não adicionar, fazer existir, algo além, o (1 + x), ou seja, o terceiro ora excluído?[xi]
Pela intersecção[xii], multiplicação:[xiii]
Se creio poder suportar alguma coisa com o NÓ BORROMEANO, algo que não é[xiv] uma definição do sujeito, enquanto tal, não tem nada de metafísica. É na medida em que ela supõe um sujeito, que a metafísica se distingue do que tento articular de uma prática. E isso, no sentido de tê-lo distinguido de alguma coisa que é de puro lugar, pura topologia, avança-se como sendo 3 outros discursos. Está aí um fato de discurso pelo qual tento dar ao Discurso Analítico seu lugar de ex-sistência[xv]
Lacan inclui o 3º excluído:
Por que, indaga-se Boole, antes de escrever x = x2, e o inverso, não se poderia escrever x = x3? [Ele concebe] que a operação matemática xyz iguala-se também a zero: xyz = 0.
Note-se que para x.y.z = 0, é necessário que ao menos um destes seja zero.
Assim, o que é que pode impedi-lo de acrescentar a seu (1-x), um (1+x), e de acrescentá-lo não como adição, [mas como] multiplicação. ... (1-x) multiplicado por (1+x), dando (1–x2)[xvi]:
x - x3 = 0, então x = x3
x. (1-x). (1+x) = 0 à x – x3 = 0 à x = x3
Proposta de Lacan[xvii]: incluir o terceiro termo (1+x), pela inscrição que a matemática permite: - (1+x), menos um mais x
Lacan aponta que por trás do dito de Boole, de que não se poderia negar o negado (não-não-x), há um dizer que aponta que esse não-não, dupla negação, ex-siste. O que Lacan usa na sequencia desta lição, articulando a lógica do não-todo.
Para concluir, estudar lógica e topologia lacaniana são preciosos caminhos para ver como incursões lógicas de Lacan geram efeitos na clínica, apontando para a relação entre lógica, topologia e direção do tratamento. A partir desses passos, colhemos frutos, na clínica e nas possibilidades de formalização desta.
* Psicanalista, membro de Escola da EPFCL e do Fórum São Paulo
[i] Cartel finalizado em 2021, com Adriana Grosman, Daniele Guilhermino Salfatis (+1), Maria Célia Delgado de Carvalho e Paulo Marcos Rona
[ii] Doxiadis, Apostos e Papadimitriou, C. H.: Logicomix – Uma Jornada Épica em busca da verdade. Ed. Martins Fontes, SP. 2013
[iii] Lacan, J.: O Seminário – Livro 21: Os não-tolos vagueiam. 1972-1973. Moebius – Publicação não comercial. Salvador, Bahia, ano 2016. Cap. 13
[iv] Lacan, J.: O Aturdito, in Outros Escritos. 1972. Jorge Zahar editora, RJ. pp. 448-497.
[v] Logicomix, p. 103
[vi] Enrique Rocha. Raciocínio Lógico para Concursos - Você consegue aprender. 3ªEdição. Site Infoescola: https://www.infoescola.com/matematica/logica-proposicional/
[vii] Lê-se buleana
[viii] Logicomix, p. 107
[ix] Lacan, J. O Seminário – Livro 21. Cap. 13, aula de 14 de maio de 1974, p. 218
[x] Ibidem, p. 218
[xi] Ibidem, p. 221
[xii] Não intercessão, como está na tradução, que seria ato de interceder
[xiii] Nota da autora: Notável em matemática significa operações e elementos frequentemente calculados, de forma que seu resultado é 1) considerado notável; 2) conhecido, não precisa ser calculado a cada vez. Os produtos notáveis encurtam o desenvolvimento em álgebra.
[xiv] Neste texto: itálicos nas citações de JL são notações do próprio texto; negritos são notações da autora.
[xv] Seminário 21, p. 218
[xvi] Ibidem, p. 221
[xvii] Ibidem, p. 221
stylete lacaniano. ano 8. número 24.