Os Chistes, palavra que lateja
Margarida Eugenia Campos Gomes Marques*
“Mesmo não comportando nenhuma satisfação particular imediata, o chiste consiste em acontecer no Outro alguma coisa que simboliza o que poderíamos chamar de condição necessária de qualquer satisfação. Ou seja, que vocês sejam ouvidos para além do que dizem” (Lacan, 1999, p.156)
Escrevo aqui o que pude perceber do lugar pulsante dos chistes. O chiste se oferece para um precioso estudo. Tenho muito prazer em trazer recortes de um estudo tão delicado, do que escapa, do que comparece por trocadilhos, piadas, atos falhos, na sombra enigmática do riso para além da palavra, formações do inconsciente, sonhos recolhidos das andanças pelos escritos de Freud e Lacan.
Querendo destacar a relação entre o inconsciente e a linguagem, Lacan efetuou uma leitura estrutural da noção freudiana de condensação. Assemelhou a uma metáfora, fazendo do dito espirituoso, uma metáfora, isto é, a marca pela qual surge no discurso, um “rasgo”, de verdade que procuramos mascarar. Roudinesco (1997)
Importante lembrar que após A interpretação dos sonhos (1900) e a Psicopatologia da vida cotidiana (1901), Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905) foi a terceira grande obra de Freud, dedicada a nova teoria do inconsciente. O livro de 1905 foi uma etapa fundamental na elaboração da teoria freudiana do inconsciente. Lacan deu a entender que Freud teria percebido, antes das descobertas da linguística moderna, uma relação entre as leis de funcionamento da linguagem e as do inconsciente.
Em 1905 Freud começa o dizer dos chistes abrindo as portas para os mal-entendidos, incompreensões e mundo vasto das formações do inconsciente e da interpretação dos sonhos.
O que diferencia um gracejo de um chiste é que o sentido da oração que escapou à crítica não necessita ser válido, novo ou meramente bom; só é preciso que se possa dizer, por mais que seja insólito, supérfluo ou inútil dizê-lo. “Nos gracejos, o que se situa em primeiro plano é a satisfação de tornar possível o que a crítica proíbe” (Freud, 1905/1996, p. 124), podemos pensar os chistes tendo autoria, receptor, leitor e grande Outro. A dimensão do outro precisa cair para a dimensão imaginaria e o leitor estar aberto para receber o texto do autor. Mais do que o sentido da piada, existe a fala, o equívoco, atos falhos, lapsos. O que tem estilo e autoria. Só aquele sujeito poderia dizê lo.
Receber o chiste e sofrer os efeitos dele. O chiste vai demandar uma operação do outro como um lugar vazio Lacan. (1953). Há uma queda da inibição, narcisismo, vaidade... O vaidoso quer interpretar demais e perde a possibilidade de se afetar pelo chiste. Lacan nos disse que o cômico é um riso a dois, enquanto o chiste é um riso a três (Lacan, 1995, p. 302-303). Rimos, na situação cômica, de uma certa queda. Há esse alguém ou esse algo que cai, e há aquele que ri. Um riso a dois. Quanto a essa queda, Lacan nos diz que ela também corresponde a certa separação da imagem (Lacan, 1999, p. 137). A imagem se separa de certo real e sai andando sozinha. É quando ele lembra da imagem do pato sem cabeça andando assim mesmo. Nós, então, até podemos já ver aí uma estrutura triádica, estrutura de três termos, pois há o real quedado ao chão, há a imagem que anda sozinha e há aquele que ri disso. A dimensão do cômico produz afrouxamento para acontecer os chistes. No humor acontece um espaço onde comparecem os chistes. O riso do Outro ao chiste é um acontecimento, um evento real. Não é uma significação, nem a adição infinita de mais um termo significante: mas também não é uma voz.
Os antigos já observaram que o homem é o único animal que ri; não puderam dizer, que é o único que tem voz. O chiste produz mais além dos traços que herdamos do outro, um som a mais. Sonoriza algo... há algo desumano no humano.
O que são os chistes, transmitidos em uma linguagem cifrada, tal qual lalíngua? É na relação de um significante com um significante que vem gerar-se uma certa relação significante sobre significado. A distinção entre os dois é essencial. Lacan (1957), coloca o significante em cima e o significado abaixo. O inconsciente se interessa muito mais pelo significante do que pelo significado. Ele é constituído por cadeias de significantes, que são os encadeamentos sonoros das palavras.
“Objetivo do chiste, com efeito, é nos reevocar a dimensão pela qual o desejo, se não reconquista, pelo menos aponta tudo aquilo que perdeu ao percorrer esse caminho, ou seja, por um lado, o que deixou de dejetos no nível da cadeia metonímica e, por outro, o que não realizou plenamente no nível da metáfora”. (Lacan, 1998/1999, p. 100)
Chiste é um processo social. Em Psicologia das Massas (Freud,1922) vai dizer que para produzir um chiste é preciso que se forme um laço social com o outro. E o próprio chiste é indutor deste laço de afinidade. O chiste funciona dentro da paroquia. O chiste é paroquial, está em determinada paroquia. O chiste é uma linguagem singular. Em grupo se faz piada machista, racista, corporativa.
Este cruzamento explica a piada pelo efeito que ela causa. Emergência do desejo que está sufocado. Você me conta, eu conto para o outro que conta para outro. Quando eu conto e o outro ri eu consigo ter um fragmento de gozo, em Lacan. O gozo é sempre do outro. Quando se constrói um chiste, há sempre uma terceira pessoa que é o lugar no inconsciente, o sujeito do inconsciente, que vai estar em curso nesta produção linguística desejante.
Em Freud (1905) o chiste brinca com a deformação da palavra, deformando uma parte da linguagem para produzir determinado efeito. O chiste dá estrutura ao pensamento psicanalítico, em Lacan 1957. Temos uma demanda e a demanda gera necessidade e começa a construir o outro dentro de mim. O Witz é aquilo que se traduziu por tirada espirituosa, em francês paroles pleines d’esprit, ditos espirituosos, envolve a palavra, o trabalho com a linguagem, formações do inconsciente.
Lacan mostra que a cada gesto de escrita do estilo do autor, há um apagamento da subjetividade deste autor. O autor encontra se presente no texto com o gesto. Há um ponto inconfessável a respeito do autor. Atravessamento. O leitor testemunha a luz opaca do sujeito que irradia uma autoria.
Primeiramente, Lacan nos lembrou que o chiste é um ato de enunciação, um ato de palavra. Isso, por si só, já o destaca do simples cômico: uma situação cômica pode ser produzida na fala, mas uma situação em que ninguém tome a palavra pode já ser cômica. Lacan nos lembra no Seminário 5 (1950) que o chiste, afinal de contas, é uma demanda. Aliás, Lacan tanto acentuou o que o chiste tem em comum com a demanda como também o que ele tem de peculiar, relativamente às demais demandas.
Chegamos à noção de que, no decorrer de um discurso intencional em que o sujeito se apresenta como querendo dizer alguma coisa, produz-se algo que ultrapassa seu querer, que se manifesta como um acidente, um paradoxo, ou até um escândalo (Lacan, 1957).
No lugar disso, Lacan nos diz que o máximo que o analista pode fazer, quando ele o pode, é ajudar o sujeito a formular aquela frase que lateja, impronunciada, sob seu sintoma. Então, vejamos: após tanta procura, tanto trabalho, tanto sofrimento, antes e durante uma análise, após tudo isso, uma frase. Uma frase! E pior ainda, que natureza teria esta frase? Em que forma ou sintaxe ela viria? Pergunta pela sintaxe, pois já nem podemos esperar grande coisa de sua semântica; não podemos esperar dela uma significação respondente às interrogações do sujeito, nem mesmo uma significação respondente a sua interrogação essencial. Esta frase, não podemos nem mesmo esperar dela a estrutura de um daqueles períodos longos, com várias orações subordinadas intercaladas, como aqueles períodos de Proust, que constituem por si só um longo parágrafo. Uma frase bem pequena, é o que podemos esperar dela. No para além de todo o trabalho analítico... uma frase, uma pequena frase. Não uma nova personalidade, como nos prometiam, ou melhor, nos exigiam, segundo Lacan (1958), os pós-freudianos. Não. Uma frase. E na verdade, aquela frase de sempre, latente em toda sintomatologia, só que agora nova, pois enunciada pela própria boca do sujeito.
O inconsciente, justamente, só se esclarece e só se entrega quando o olhamos meio de lado. Aí está uma coisa que vocês encontrarão o tempo todo no Witz pois tal é sua própria natureza – vocês olham para ele, e é isto que lhes permite ver o que não está ali. (LACAN, 1958).
* Psicanalista, membro do Fórum Rio
Referências
FREUD, S. (1905). El chiste y su relación con lo inconsciente. In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, trad, Vol. 8). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1905
LACAN, J. O Seminário, livro: 5 As formações do inconsciente – 1957/1958 (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: JZE. (Trabalho original publicado em 1998)
LACAN, J. O Seminário, livro 17: A lógica do fantasma1966/1967. Recife: Centro de estudos Freudianos de Recife. 2017.
ROUDINESCO, E. Dicionário de Psicanalise. 1997. RJ: Zahar
stylete lacaniano. ano 8. número 24.