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O amor nas psicoses, ou sobre o que é o amor

 

Letícia Gondim* 

Freud (1895/2006, p.257), no rascunho H, afirma sobre a psicose: “essas pessoas amam seus delírios como amam a si mesmas.”  E Lacan (1956, p.297) aponta: “Ali onde a fala está ausente, ali se situa o Eros do psicotizado, é ali que ele encontra seu supremo amor.” Allouch (2010), contrapondo-se a essas afirmações, assegura que, na psicose, não se trata de uma neurose narcísica, que impediria a transferência; trata-se, sim, de saber como pode amar um psicótico. E sobre o amor, Lacan se refere à palavra plena. Dito isso, esse amor tem lugar e não estaria onde se ausenta a fala. 

 

Em À Guisa de Introdução ao Narcisismo, Freud (1914/2004) sinaliza que, na neurose, o indivíduo não suspende seu vínculo erótico com as pessoas, mas substitui, por meio da fantasia, os objetos reais a fim de mantê-los na lembrança.  Na psicose, no entanto, o indivíduo retira o investimento dos objetos sem a substituição pela fantasia, retornando a libido ao Eu. O complexo de castração provocaria o conflito entre as moções libidinais e as concepções culturais e éticas do indivíduo, levando ao recalque, no caso da neurose. Freud utiliza o termo Eu ideal para falar do amor de si, assim como utiliza Ideal de Eu para se referir ao resultado do recalque. Por meio do Ideal de Eu é possível transferir a satisfação libidinal aos objetos e, quando não ocorre esse ideal, o indivíduo fica refém do mecanismo de funcionar como seu próprio ideal.  

 

Lacan (1954a) aponta que Freud, se embaraçou ao abordar a oposição entre libido versus desinvestimento ao mundo exterior que, segundo Freud, é característico das formas de demência precoce. Ao trazer a questão do autoerotismo, ele também, de certa maneira, cinde a libido, afirmando que o investimento nos objetos ocorre por meio do prolongamento do corpo ao mundo, quando é mantida uma ideia de neutralização da libido. A isso, Lacan responde que a distinção libidinal estaria entre as relações reais, no sentido das realizantes e a função do desejo.

 

Lacan (1954b), recorrendo ao esquema óptico, aborda o estádio do espelho.  Lacan (1954b) utilizou do experimento do buquê invertido para dizer que, no caso do ser humano, diferente dos animais, é preciso que haja um outro que antecipe a imagem para que se produza um ser. O ser humano só consegue ter a sua forma total fora de si mesmo. Quando ele mesmo faz essa tentativa, a imagem é fragmentada, destacando a difícil adequação do imaginário, a qual exige que haja a voz do outro, caracterizando a relação simbólica, que é o Ideal de Eu. (1954c).

 

Lacan (1954d) afirma: 

O homem atingiu o acabamento da sua libido, antes de encontrar o objeto dela. É por aí que se introduz essa falha especial que se perpetua nele na relação a um outro infinitamente mais mortal para ele que para qualquer outro animal. (Lacan, 1954d, p.199)

Sendo assim, o autor (1954d, p.199) atesta: “Estamos todos de acordo em que o amor é uma forma de suicídio.” 

 

Lacan (1954e) considera que o ser humano se apreende enquanto corpo na troca com o outro, evidenciando que, em sua forma original, antes da linguagem, ele é inconstituído e é por meio de um reconhecimento do outro que aprenderá a se reconhecer. Na origem o desejo está no plano da relação imaginária, não tendo outra saída a não ser a destruição do outro. Portanto, a relação de amor está referida ao quadro narcísico, mas não se realiza no plano imaginário. O amor exige um pacto, e pode se apresentar de muitas formas, ora se assumindo no interior ora no exterior da linguagem. 

 

No seminário A transferência, livro 8, Lacan (1961) trabalha o amor por meio de O Banquete, de Platão. Na discussão sobre o que define o amor, Diotima o coloca como sendo amor ao belo, sendo o amor o amado e não o amante, e caracterizando a relação como biunívoca, pois tem por objetivo a identificação com este ser absoluto. Em contraponto a esse objeto total, Lacan traz esse outro amado como um punhado de objetos parciais que tomamos como sujeito e não como objeto. O objeto da paixão é derivado do objeto de desejo que está contido nele, agalma, a metonímia do discurso inconsciente. Dessa forma, partimos do amor à identificação. Temos aí, então, duas perspectivas do amor:  uma em direção ao bem supremo, que ele chamou de amar-em-Deus, outra que tem relação com o agalma, que ele chama de amar verdadeiramente. 

 

Na psicose, Allouch (2010) coloca que, no delírio, existe uma relação com a fala, mas considerando o apego ao significante enquanto tal, ele só poderia amar em outro lugar. Lacan (1956) não trabalha com a perspectiva de Freud, que coloca no autoerotismo a não relação com os objetos, visto que, em sua observação clínica, o recém-nascido se relaciona com todo tipo de objeto. A questão está na distinção entre o outro imaginário, que consiste no que se estrutura como campo originário dos objetos para o recém-nascido e o Outro absoluto, que é tudo em si, mas fora de si, aquilo que compreende a relação extática, o Outro como radicalmente Outro. 

 

Temos então um paradoxo, ao mesmo tempo em que para Lacan (1956) o psicótico só pode apreender o Outro pelo significante, o qual se demora apenas numa casca, sinalizando essa heterogeneidade radical e provocando a inevitável extinção do sujeito que só poderia amar como amor morto. A isso, Allouch (2010) responde: não seria a heterogeneidade uma aposta de que o amor está vivo? Sendo assim, ele lança as questões: haveria outro amor verdadeiro que não o do psicótico? Ele seria um representante do amor extático a ser distinguido de qualquer um?

 

Allouch (1997), citando Roudinesco, afirma, sobre a tese de Lacan Da psicose Paranoica em suas relações com a Personalidade, que Lacan quem fez transferência com Aimée. Ele declara: “Minha paciente, aquela que chamei de Aimée, era realmente muito tocante” (Lacan citado em Allouch, 1997, p. 449). Lacan fica numa posição de observador e ela aceita e lhe confidencia. A nomeação pública dessa paciente revelaria o seu amor por ela. Segundo Allouch (1997), ele foi tocado pela falta de amor que se encontrava nela. Além disso, foi fisgado pelo saber, saber de alguma coisa que estaria ali e que provocou em Lacan a pergunta: O que é o saber?

* Psicanalista, membro do Fórum Brasília

Referências

Allouch J. (2010). Rumo a um amor extático. In Allouch J. O Amor Lacan (pp.83-97). Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Allouch J. (1997). Sobre a transferência psicótica. In Allouch J. Paranóia Marguerite, ou “Aimée” de Lacan (pp. 431-456). Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Freud S. (2004). À guisa de introdução ao narcisismo. In J.Strachey (Ed.), Escritos sobre a psicologia do inconsciente (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 1, pp. 95-119). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1914).            

Freud S. (2006). Rascunho H: paranoia. In J.Strachey (Ed.), Publicações pré–psicanalíticas e esboços inéditos: (1886-1889) (Edição Standard Brasileira das Obras

stylete lacaniano. ano 8. número 24.

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