O suicídio de Ofélia e o desejo de morte
Elena Pérez Alonso*
- Peça: “Hamlet” (tragédia) de Willian Shakespeare, (Publicada 1600-1601).
Hamlet, a tragédia do triste príncipe da Dinamarca enredado em intrigas, traições e vinganças, é uma das peças mais conhecidas e apreciadas do Bardo de Avon. Muitos estudiosos se debruçaram sobre esta tragédia que pode ser vista por diferentes perspectivas, tendo sido objeto de estudo para Freud e Lacan.
Sempre que fazemos um trabalho sobre um texto, conto ou monografia, estamos fazendo uma escolha e uma separação daquilo que mais nos tocou. É como se alguma coisa reavivasse um traço nosso e a partir daí surgisse alguma identificação e implicação que nos levasse a valorizar mais um determinado, personagem ou tema. E sem percebermos fazemos um recorte. No caso, a escolha foi direcionada para a personagem de Ofélia, na tentativa de estudar o suicídio feminino, na Grécia Antiga.
- Resumo da peça: Desde o início da peça Ofélia procura o pai para se aconselhar a respeito do assédio de Hamlet. O pai fica muito inseguro com as atitudes do príncipe, o que deixa Ofélia confusa com relação aos sentimentos que o príncipe nutria por ela.
Aconselhada também pelo irmão Laertes, que lembrava a ela que Hamlet era um homem com poder, este lhe disse: Considera, pois, que perda sofreria tua honra, se prestasses crédulo e ouvido às suas loas, ou perdesses o teu coração, ou abrisses o tesouro da tua castidade … Ofélia responde: hei de reter na memoria o sentido dessa boa doutrina.
Hamlet fica muito atormentado com o assassinato do pai e com a atitude da mãe, que se casa com o cunhado, assassino do Rei, um mês depois da morte dele.
Nessa trama de desentendimentos o espectro do pai assassinado começa a aparecer para Hamlet, pedindo para que o mesmo faça justiça. Hamlet fica muito perturbado com essas aparições e os seus sentimentos por Ofélia também ficam confusos
No meio dessas confusões, Ofélia relata para o pai o que tinha acontecido na noite anterior , dizendo: Estava eu a coser no meu quarto e Hamlet apresentou-se diante de mim com o gibão todo aberto, sem chapéu na cabeça, meias enxovalhadas. ao que Polônio questiona: louco de amor por ti? E ela responde receio que sim.
Hamlet escreve para ela dizendo: Querida Ofélia, não me sinto bem nestes versos…mas acredita eu que te amo muito. Adeus.
Ofélia encontra com a rainha e canta:
Como é que de amores pérfidos. Se distingue o verdadeiro?Tem bordão? usa sandálias? E conchas como um romeiro?
A rainha tenta falar com Ofélia, mas, ela prossegue com seu canto.
Morreu e partiu, examine. Partiu; na cova repousa.Verde relva sobre o crânio. Aos pés a marmoreal lousa.
Entra o Rei e ela continua cantando.
Era um recanto de flores, Orvalhadas por funéreo. Pranto desfeito de dores.
O Rei tenta chamar a atenção dela chamando-a de: encantadora Ofélia , mas ela prosseguia com o seu canto exclamando
“O Santa caridade! Ó Cristo! Exclamava a infeliz
Hamlet dizia: Qualquer um no meu lugar faria o que eu te fiz” .“Pois sim; mas prometeste…Com sorriso amoroso Antes de amarrotar a minha virgindade, ser o meu terno esposo”…
Laertes pergunta que rumor é este? (entra Ofélia coroada de flores e palhas.) Cantando,
Nem um véu sobre a fronte nobre e altiva! Que lástima! Que pena sem igual! Mas sobre a humilde campa se deriva. Uma fonte de lágrimas caudal. Adeus, meu amor.
Laertes comenta – A tristeza, a aflição, o desespero, o próprio inferno- tudo ela converte em graça e doçura.
Ofélia canta se referindo ao pai, que tinha a barba como linho. A cabeça era um arminho. Partiu, não peço que venha. É melhor não, Deus o tenha. Junto de si bem vizinho.
A rainha narra a morte de Ofélia dizendo: na borda do regato há um salgueiro, cujas folhas prateadas se espalham na vítrea corrente. Ali se achava ela entretecendo fantásticas grinaldas de ranúnculos, urtigas e daquelas grandes flores púrpuras a que os pastores soltos de língua dão mais grosseiro nome , e que as nossas castas donzelas chamam dedos de defuntos: “quando ela trepava para os ramos inclinados para pendurar a sua coroa de ervas agrestes, eis que de pronto quebra uma vergôntea inimiga, e Ofélia cai no ribeiro lacrimoso envolta com seus rústicos troféus. Os vestidos incharam e sustiveram-na por algum tempo ao lume da água, como se fora uma sereia; no entretanto ela cantava pedaços de antigas trovas, como quem não formava ideia do perigo, ou como criatura nascida e criada naquele elemento.. Mas isso não podia durar muito; os vestidos afinal ensopados arrancaram a infeliz ao seu melodioso canto , deram-lhe morte no lodo. E Ofélia afogou-se. balançando no ar, se deixa cair e não tenta se salvar.
Hamlet passava pelo local na hora do enterro e sem saber que era Ofélia que ia ser sepultada, comenta: quer dizer que o cadáver que conduzem destruiu sua própria vida com mão desesperada…
O padre confessa: suscitam-se dúvidas sobre a morte dessa senhora, e se uma ordem superior não tivesse despoticamente dominado a lei, ela teria sido alojada em terra profana…e em vez de orações caridosas teria-se lançado sobre o corpo saibro, cascalho e pedras; e todavia, concederam-lhe as coroas de virgem, as flores de donzela, o dobre sino e a sepultura em sagrado.
É pelos homens que as mulheres morrem, é pelos homens que elas se matam, com maior frequência, por um homem e para um homem.
No momento de saltar no vácuo, é a presença ausente do homem que a mulher encontra pela última vez em cada ponto do thálamos.
Na Grécia antiga as heroínas tem uma maneira própria de morrer. Na ópera os personagens cantam para contar a sua morte. Os autores da tragédia grega recitam a morte das mulheres.
É tempo de lembrar que se para a mulher a morte é movimento, somente levantam voo as heroínas extremamente femininas.
Existe na linguagem trágica um parentesco entre o enforcamento e a precipitação. A enforcada se lança no vazio, sem dúvida, mas seu corpo deixa o solo para ficar preso ao alto do teto; a precipitação é, ao contrário uma queda profunda. - O próprio verbo aeiro, significa a elevação e a suspensão, aplica-se a esses dois lançamentos orientados em sentido inverso, para o alto e para baixo, como se o alto tivesse sua profundidade, como se alguém só chegasse embaixo - o solo, mas também as profundezas subterrâneas.
Entretanto sejam elas femininas ou viris, há para as mulheres um modo de morrer segundo o qual elas permanecem plenamente mulheres. É sua maneira fora do teatro, de encenar seu suicídio: encenação minuciosa fora do olhar do espectador, e depois o anúncio de um mensageiro de que ela se matou longe dos olhares. Como Ofélia ela se afasta indo até o rio e se pendurando na árvore como quem quer levantar voo, balança e se deixa cair no rio. Ela se afasta para morrer longe dos olhares.
* Psicanalista, membro do Fórum Rio
Referências
SHAKESPEARE, Willian, 1564-1616. Hamlet / Willian Shakespeare. Tradução de José Antonio de Freitas.- São Paulo; Martin Claret, (Coleção a obra prima de cada autor: 39), 2010.
LORAUX, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1995
stylete lacaniano, ano 8, número 24.