O QUE ANIMA O FASCISMO?
Maria Paula Teperino*
Por acreditar que a Escola de Lacan é uma praça pública, onde podemos arriscar nossos próprios caminhos, um lugar de encontro, mas também de riscos, é que ouso trazer à discussão algo que me inquieta, por misturar uma posição subjetiva do sujeito a uma tomada de posição coletiva. (1).
Nascemos desamparados, e dessa posição variamos pouco ao longo de nossa existência. A busca por um pai, faz com que busquemos entre outros, a religião ou nos entreguemos alienadamente a seguir um líder.
Mas que mecanismo, se é que existe, faz com que sigamos por um caminho e não por outro? As dúvidas são muitas.
A motivação para essa escrita é antiga, começou em 2013 com as manifestações de rua. Porém, o ápice se deu no fatídico 8 de janeiro de 2023, onde milhares de pessoas invadiram as sedes dos Três Poderes em Brasília, com o objetivo de dar um golpe de estado. O que motivava tanto ódio e irracionalidade? Porque desejar a volta de um regime de exceção, tão conhecido por todos? Afinal, foram 21 anos de uma ditadura sangrenta, com marcas que somos obrigados a conviver até hoje.
Com o correr das investigações sob aquele sinistro dia 8 de janeiro, ficamos sabendo tratar de uma massa bastante heterogênea. A questão a se perguntar, é qual o traço ou os traços de identificação entre eles.
Denomino como segundo tempo de um Nazifascismo, o que não só o Brasil, mas também Europa e EUA passaram a conviver a partir do início do Século XXI. A ascensão de uma extrema direita raivosa e vigorosa faz lembrar aos mais velhos os horrores de tempos não tão distantes.
A possibilidade de estarmos nos aproximando de um reacionarismo mundial, nos lança na seguinte pergunta: Existiria um afeto predominante entre os sujeitos que compõem as massas que apregoam o fascismo? Por que uma ideologia baseada na segregação, ódio e desprezo pelo diferente, consegue angariar tantos adeptos?
As reflexões que faço estão baseadas em alguns livros que me serviram de guia, são eles: “Como funciona o fascismo” de James Stanley, Ressentimento de Maria Rita Kehl, Fascismo Brasileiro de Rudá Ricci, e claro, os textos da Cultura de Freud.
Freud nos deixa uma contribuição importante sobre a origem do fascismo, no Cap. VIII de seu atualíssimo “Psicologia das Massas e Análise do Eu. Na fascinação, diferentemente da Identificação, o Eu se empobrece, colocando o objeto no lugar de sua parte constitutiva mais importante. Neste caso, o objeto permanece conservado e, é superinvestido enquanto tal, às custas do Eu. (2).
Como nos diz Stanley, numa sociedade fascista, “o líder da nação é análogo ao pai da família patriarcal tradicional. Ao apresentar o passado da nação como uma estrutura familiar patriarcal, a política fascista conecta a nostalgia, a uma estrutura autoritária hierárquica organizadora central, que encontra sua mais pura representação nessas normas”. (3)
Vimos através de Freud, como o Eu se comporta com relação a fascinação. Entretanto, há algo de singular a mover esses sujeitos em direção a essa utópica sociedade fascista. Minha aposta é que esse sonho mítico, se apoie no ressentimento.
Freud não tratou diretamente desse afeto, mas para Kehl, há traços muito semelhantes entre o ressentido e o melancólico. Sabemos que na melancolia o aparelho psíquico não é capaz de elaborar a perda. O que se perde diferentemente do luto, é o próprio Eu.
O ressentido é aquele que na maioria das vezes foi corresponsável por seguir um caminho que mais tarde se apresentou como não satisfatório, mas credita no Outro os resultados nefastos, fruto de suas próprias escolhas. Aquele que renuncia a seu desejo, mas responsabiliza o outro por isso. (4). Como nos diz a autora em outro texto, “uma das condições centrais do ressentimento é que o sujeito estabeleça uma relação de dependência infantil com um outro, supostamente poderoso, a quem caberia protegê-lo”. Ressentimento - Maria Rita Kehl - Brasil 247
A ideologia nazifascista como sabemos, promete o retorno a um passado glorioso. Logo, em momentos de mudanças sociais radicais, de novas configurações familiares, de tentativas de inclusão dos grupos menorizados, “o sentimento atávico de busca por uma autoridade potente é naturalmente acalentado”. (5).
Para Kehl, “o ressentimento na política se produz na interface entre a lei democrática e as práticas de dominação paternalistas. No Brasil, onde essas duas condições se combinam de maneira frequentemente perversa, os movimentos sociais oscilam entre as proposições ativas de transformações sociais e as manifestações reativas, ressentidas, que expressam insatisfação popular, mas não levam a nenhum resultado efetivo no sentido do aperfeiçoamento dos dispositivos da democracia”. (6). O ressentido não age, ele reage.
Se o fascismo, principalmente o Europeu, tem como mote o medo do imigrante, como aquele que vai tirar direitos da população local, no Brasil o medo é de um pseudo comunismo, entendido por alguns, como ter de renunciar a seus lugares de privilégios, que acreditam ser detentores por direito.
Segundo Stanley, “na política fascista, mitos de um passado patriarcal, ameaçados pela invasão de ideais liberais, atuam para criar uma sensação de pânico frente à perda do status hierárquico, tanto para homens quanto para a capacidade do grupo dominante de proteger sua pureza e status da invasão estrangeira”. (7).
Ora, depois de mais de 25 anos de governos sociais-democratas, finalmente, a duras penas, as ditas minorias, passaram a ter acesso às políticas públicas. Consequentemente, a chamada sensação de “pânico frente à perda do status hierárquico”, que nos diz Stanley, lançou as ruas e as redes sociais, milhões de brasileiros, primeiro elegendo Bolsonaro e logo em seu primeiro ano de governo, pedindo intervenção militar.
Mas de que “comunismo” falam? Com certeza o que chamavam e continuam bradando como ameaça “comunista” é o medo de uma sociedade plural, menos hierarquizada, mais diversa. Como nos diz Ricci, nosso “ovo da serpente” começou a ser gestado a partir da Constituinte de 1987, mas mostrou sua cara a partir de 2013 com os movimentos de rua, depois pela Operação Lava Jato, e finalmente a chegada da extrema direita ao poder em 2018. Engana-se quem acha que somente a direita colocou esse “ovo” para chocar. A esquerda também deu sua contribuição, não conseguindo captar a revolta ainda que de forma menos barulhenta dos movimentos denominados: Comitês da Copa, iniciados a partir dos Mega Eventos Esportivos, que tiveram início em 2007.
Por trás dessa “revolta” moral, existe sem dúvida, um sentimento singular que permite a identificação desses sujeitos.
Para Nominé, a vida em sociedade nos convoca a encontrarmos um lugar, e para definir o próprio lugar na ordem simbólica, é que serve a identificação, “como um processo que se impõe porque temos de encontrar nosso lugar numa relação que não seja dual”. (8).
Esse texto tenta entender o ódio que arrebatou e ainda arrebata milhões de brasileiros. Para terminar trago uma reflexão de Sun Tzu, em “A arte da guerra”, citado por Bernard Nominé em suas conferências de 2014/2015. “Deve-se deixar uma saída para o inimigo sitiado. Não deixem um inimigo encurralado, os animais selvagens, quando encurralados, batem-se com a coragem do desespero”.
Sejamos sábios para com as serpentes que gestamos.
*Psicanalista membro do FCL Rio de Janeiro
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Fingermann, Dominique – “A (de) formação do psicanalista “– São Paulo – Ed. Escuta – (2016). Pág. 27.
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Freud, S (1921) – “Psicologia das Massas e Análise do Eu” – Obras Incompletas de Sigmund Freud – Cultura, Sociedade, Religião – O Mal-estar na cultura e outros escritos – Belo Horizonte/São Paulo – Ed. Autêntica - 2020 – Pág. 189.
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Stanley – J (2018) – “Como funciona o fascismo” – A política dos Nós e Eles – E&PM Editores – 7ª Edição – 2022 – pág. 22.
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Kehl, M R – “Ressentimento” (2004) – São Paulo – Ed. Boi Tempo – 2020 - p. 16
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Ricci, R – “Fascismo Brasileiro – E o Brasil gerou seu ovo da serpente” – Curitiba – Kotter Editorial - (2022). Pág. 178.
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Kehl, M R – “Ressentimento” (2004) – São Paulo – Ed. Boi Tempo – 2020 - Idem, Pág. 15.
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Stanley – J (2018) – “Como funciona o fascismo – A política dos Nós e Eles” – E&PM Editores – 7ª Edição – 2022 – pág. 27
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Nominé, B – (2014/2015) – “Sobre identidade e identificações” – São Paulo - Ed. Blucher – 2018 – Pág. 19.
stylete lacaniano, ano 9, número 27,