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Escritura Freudiana do sonho uma leitura

Margarida Eugenia Campos Gomes Marques*

“Só sei que há mistérios demais, em torno dos livros e de quem os lê e de quem os escreve; mas convindo principalmente a uns e a outros a humildade. Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente” (Guimarães Rosa)

O caminho desta escrita, mantem minha singularidade, atravessa o meu desejo, me permite estabelecer laços. Enquanto escrevo produzo uma escritura e “Escrever é quebrar este laço que une a palavra a mim mesmo. ” Maurice Blanchot, é o que faço agora.

Contar bem é sermos bem escutados. Chegando a ossatura da palavra, a letra me atravessa e convida a perceber o que me faço sentir com esta experiência. Sou tomada pela leitura ao reconhecer a obra Interpretação dos Sonhos (1900) como uma escritura freudiana. A palavra escritura  vem do  latim scriptūra, sinônimo de escrita, é a ação e o efeito de escrever (representar as palavras ou as ideias com letras ou outros sinais traçados em papel ou noutra superfície) se refere ao documento legal, assinado na presença ou não de testemunhas, pela(s) pessoa(s) que o validam. Quando se escreve com maiúscula inicial (Escritura), o conceito refere-se à Sagrada Escritura. Deve-se partir do texto e como Freud o faz e aconselha, como de um texto sagrado. O autor, o escriba, é apenas um escrevinhador e vem em segundo lugar. Os comentários das Escrituras ficaram irremediavelmente perdidos no dia em que se quis fazer a psicologia de Jeremias, de Isaías, inclusive, a de Jesus Cristo. Da mesma maneira quando se trata de nossos pacientes, peço-lhes que prestem mais atenção ao texto do que à psicologia do autor – é a orientação toda do meu ensino (Lacan, 1954-5/1992, pp. 195)

0 texto freudiano 'Unheimlich ' (1919) diz: É verdade que o escritor cria uma espécie de incerteza em nós, a princípio não nos deixando saber, sem dúvida propositalmente, se nos está conduzindo pelo mundo real ou por um mundo puramente fantástico, de sua própria criação. Ele tem, decerto, o direito de fazer ambas as coisas. (Freud, 1919/1976, p.288).

Freud (1913) declara textualmente: "Se pensarmos que os meios de representação nos sonhos são principalmente imagens visuais e não palavras, veremos que é ainda mais apropriado comparar os sonhos a um sistema de escrita do que a uma linguagem" (p. 212,) 

Em Proposição de 09 de outubro de 1967, escutamos de Lacan: "A psicanálise tem consistência pelos textos de Freud, esse é um fato irrefutável. Sabemos que de Shakespeare a Lewis Carroll, os textos contribuem para seu espírito e seus praticantes". Esta acolhida, no entanto, é plenamente justificada. Freud se lançara em um caminho vedado à comunidade científica. Se preocupar com sonhos era para poetas e artistas, escritores. A ciência, por sua vez, saía do tratamento moral da doença mental e entrava no organicismo. Neste contexto, as preocupações e métodos de Freud eram, no mínimo, excêntricas.

O sonho como manifestação do inconsciente provoca uma proliferação de associações do sujeito oferecidas a interpretação.  Ao ter como destinatário um analista, o que busca é saber algo do enigma dos sonhos. Freud se dedica especialmente ao sonho de Irmã, o sonho responsável pela inauguração da Psicanálise, “o sonho dos sonhos” marca para Freud, a descoberta do segredo dos sonhos (Na placa: Aqui 24-07-1895, o segredo do sonho se revelou para Dr. Sigmund Freud)

Lacan (1954 -1956, p.202) se referindo a fórmula no sonho de Irmã diz:  “Tal qual um oráculo não fornece resposta alguma ao que quer que seja. Mas a própria maneira pela qual ela se enuncia, seu caráter enigmático, hermético, é justamente a resposta a questão do sentido do sonho. Pode-se calca-la na fórmula islâmica - Não há outro Deus senão Deus. Não há outra palavra, outra solução ao problema de vocês, se não a palavra. Podemos debruçar sobre a estrutura desta palavra, que aqui se apresenta sob uma forma eminentemente simbólica, já que é constituído por sinais sagrados”. Este sonho nos ensina, portanto, o seguinte – O que está em jogo na função do sonho se acha para além do ego, aquilo que no sujeito é do sujeito e não é do sujeito, isto é o inconsciente. O importante e o sonho nos mostra isto, é que os sintomas analíticos se produzem na corrente de uma fala que tenta passar” (Lacan, 1954-1956, p. 203).

O pensamento freudiano nos prende pelas amarras da sutileza afinada de sua escuta, que da identidade as palavras e a seus significantes pelo som da voz de Freud em seus escritos. Aquele que arrisca a se apresentar pelos parágrafos do texto, é em nome de Freud, colocando algo de si mesmo, sustentado pela transmissão da psicanálise e pelo inconsciente e escuta de cada um. O inconsciente é dito por Freud, como uma outra cena.  

 

A primeira edição de A Interpretação dos Sonhos (1900) Sigmund Freud, foi lançada no final de 1899 (com data de 1900), mais de um século depois se tornou um dos livros mais influentes da época moderna, incontáveis edições em dezenas de línguas. Freud (1900) traz observações e escritas de vários pesquisadores.  No adendo de 1909, ele diz que os pesquisadores nada trouxeram de novo para ele no estudo dos sonhos. Os pesquisadores foram os que menos deram atenção, dando um exemplo perfeito da aversão de aprender algo novo, típico das pessoas científicas e completa, citando Antonele France “estudiosos não são curiosos”.

Freud chega à conclusão de que o sonho é realização disfarçada de um desejo reprimido, muitas vezes de origem infantil, pensamento que perdura com modificações em 1920. Em Interpretação Dos Sonhos (1900), estuda os mecanismos do “trabalho do sonho”. O sonho assegurou uma porta de entrada com a possibilidade de trabalho com histéricas, pesquisa e teoria da sedução. Pensamento que perdura com modificações em 1920. 

Após interpretação dos Sonhos (1900), Freud inaugura o inconsciente, fazendo emergir o sujeito do desejo, como sujeito determinado pela linguagem. O sonho é com efeito a sua narrativa, uma associação livre de palavra em palavra que se dá muitas vezes não pelo conteúdo das palavras e sim por sua sonoridade, através da proximidade das imagens acústicas das palavras, nos termos da linguística, nos significantes e cenas dos sonhos.  

 

Um sonho, palavras e texto, como tal se lê. Freud é muito preciso a este respeito, semelhanças das palavras, rebus, analogias, são algumas das expressões de Freud para dar conta de que o sonho quer dizer mais do que um texto.

O sonho para Freud é o protagonista, ele concebeu como via regia ao inconsciente, na medida em que dava conta de sua descoberta central, uma mensagem cifrada, atribuindo as leis, deformação, condensação, deslocamento e censura. Tema que interroga no centro de nossa clínica, na medida em que desde de Freud até nossos dias, houve variação a respeito do lugar que é dado aos sonhos na direção da clínica. 

Aquele que interpreta ocupa o lugar do leitor, não para ler os sonhos, mas para ler aquilo que eles dizem por terem sonhado. (Marotta).

*Psicanalista membro do FCL Rio de Janeiro

LACAN, J.  O Seminário, livro: 2 As formações do inconsciente – 1954/1955 (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro

LACAN, J. (1957-58]) O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

LACAN, J. O Seminário, livro 17: A lógica do fantasma1966/1967. Recife:  Centro de estudos Freudianos de Recife. 2017.

ROUDINESCO, E. Dicionário de Psicanalise. 1997. RJ: Zahar

FREUD, S. Interpretação dos sonhos 1900. 2020.Companhia das Letras. SP

stylete lacaniano, ano 9, número 27,

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