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a não-toda se escreve na margem

Claudia Saldanha*

Entre uma vírgula e dois pontos, o filme O Livro dos Prazeres, de Marcela Lordy, e o livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector, são obras abertas à liberdade do desejo. Margear entre as escritas de mulheres que se Ⱥ-riscam entre a solidão e o laço causa desmarginação e (re)escritas que se abrem à não-toda, um elo entre lógica e poesia.

 

“Sou um monte intransponível no meu próprio caminho”

 

Lóri silencia e se aturde em (des)encontros sexuais fortuitos nos quais corpos a(mal)gamados tentam fazer Um. “É o cio sem desejo” que tende a se agarrar ao gozo fálico por não conseguir margear o furo da não relação sexual e temer se abismar no ab-senso do gozo Outro. Lóri só sabia estar viva através da dor. Como estar viva através do prazer?

 

“nada se passara dizível em palavras escritas ou faladas”

 

Lacan parte rumo à lituraterra, à lógica, à poesia para escrever a sexuação e a impossibilidade da relação sexual. Enuncia que a história da relação sexual gira em torno do escrito e que a psicanálise fez uso dos mitos de Totem e tabu e de Édipo para abordar a sexualidade. Analisa não ter sido indiferente partir do conto A carta roubada de Edgar Allan Poe para tratar sobre o “efeito feminizante” da carta/letra, pois o movimento da trama desvela o fracasso da escrita da relação sexual. 

O que a carta/letra transmite como escrita é o não há relação sexual e, a partir de deslocamentos, alcança o destino de marcar o ab-senso e a ilegibilidade da letra, mantendo o enigma pulsante em quem se permite furar. Desse modo, leio que o efeito feminizante que aproxima a carta/letra do feminino é uma pista do laço entre a letra e a não-toda que estaria por vir.

 

“‘eu te amo’ era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça”

 

Ao afirmar que a relação sexual não se escreve, Lacan sustenta que os significantes homem e mulher são semblantes não complementares, o que desvanece a ilusão do binarismo. Para tanto, constata que a castração pode ser tratada, logicamente, como uma sexuação, desviando-se da lógica clássica aristotélica para inventar “uma nova lógica”. A não-toda entra em cena como uma discordância que abre o conjunto universal para que os elementos sejam contados singular e infinitamente, possibilitando uma escrita que marca o impasse sexual.

Para Lóri, amar é morrer, uma queda no abismo. O encontro com Ulisses é um tempo permeado de hesitações, e a palavra amor não é expressada para não reconhecerem seus contraditórios, o amódio. 

 

“Ela e o mar”

 

“Viver na orla da morte e das estrelas é vibração mais tensa do que as veias podem suportar.” Da orla da morte à orla do mar, do Rio, com o Pão de Açúcar a apreciar os fios de coragem com os quais Lóri borda um novo lugar para se reescrever.

Quando Lóri adentra o mar, “abre as águas do mundo pelo meio. [...] Depois caminha dentro da água de volta à praia [...] a proa da mulher avança [...]. E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça, nunca poderá perder tudo isso.” Na margem do litoral, Lóri desmargina os próprios limites e começa a se abrir à não-toda.

Na leitura da paisagem siberiana, Lacan vislumbra que “entre centro e ausência”, a letra é litoral e escreve a margem do furo no saber, separando significante e gozo e unindo-os ao riscar esse encontro. A lógica (da) não-toda ravina uma cartografia poética da lituraterra e do lituramar que aprimora a geografia totêmica e edípica de Freud ao traçar uma sinuosidade móbil das margens e dos litorais.

A expressão é retomada para elaborar que o modo de presença da não-toda é “entre o centro e a ausência”. Considera como o centro a função fálica, na qual a mulher é não-toda escrita, o que implica em possuir um gozo duplo, um mais além do fálico que escapa do significante e a lança também em um gozo Outro que só é abordado pela letra. Para Lacan, a letra é A mulher, a que não existe, pois não há A mulher toda, nem toda mulher; as mulheres se contam uma a uma, o que permite dizer que a letra escreve a inexistência d’A mulher. Assim, a ausência é escrita pela letra: a ausência da relação sexual, a do sentido e a de um significante que represente A mulher. 

Por meio da letra, um grão de areia no litoral, a não-toda se escreve na margem. Margeia o abismo do ab-senso, a imensidão do mar aberto e pode se salvar da queda, pois se ancora não-toda na função fálica, conseguindo alcançar a margem de sentido da palavra. E, encore, mais, ainda, atraversa o litoral-literal, indo e vindo entre centro e ausência, entre palavra e poesia. 

A margem costuma ser associada a uma ideia de limite, impedimento e separação. Pode ser o lugar onde vive a pessoa que escapa da norma, da lei; a linha que delimita até onde as letras podem ir ao serem escritas em um papel pautado; o espaço sem palavras que surge quando a frase salta para outra linha da página de um livro; a beira que contorna rios, lagos e lagoas. 

A associação entre margem e mar é mais incomum, talvez porque o mar tenha litoral, ainda que a palavra margem comece a se escrever pelo mar. Com essa licença poética, tomo o litoral como uma margem para lê-la como um “entre” que não separa como um limite, e sim como uma linha móbil, sinuosa e porosa que possibilita o encontro contingente entre os diversos: areia e mar, centro e ausência, saber e gozo, fálico e furo. Uma margem que se mantém aberta e fluida às desmarginações e às invenções. Essa escrita da não-toda (La) na margem entre o centro (Φ) e a ausência [S(Ⱥ)] pode ser lida na imagem que Ⱥ-risco esboçar a partir das fórmulas da sexuação de Lacan:

 


 

 

 

 

 

 

 

 

“a grande liberdade de não ter modos nem formas”

 

Lóri “era apenas uma pequena parte de si mesma. [...] ela era o Mundo. E no entanto vivia o pouco.” De viver um estreitamento que a limitava, Lóri se expande à não-toda. “Seria uma mancha difusa de instintos, doçuras e ferocidades, uma trêmula irradiação de paz e luta” pela liberdade do desejo.

 

“Amor será dar de presente um ao outro a própria solidão?”


O amor que é ignorância do desejo não se escreve, mas uma carta/letra de (a)muro que conta que fazer o amor é poesia, um encontro contingente entre dois saberes inconscientes que não fazem Um, pode ser escrita. Pelos fios da solidão que tecem laços, Lóri e Ulisses descobrem que amar é se furar e se posicionar na margem aberta a uma vida nova, não sem encontros com o impossível e o imprevisível. Desvelam que o furo aberto pela escrita da ausência pode ser causa em vez de abismo.

*Psicanalista membro FCL Salvador​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​​

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Ilha de Boipeba, Bahia, 2023, por Claudia Saldanha

stylete lacaniano, ano 9, número 27,

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