Sobre transferência de trabalho ou quando o cartel caiu¹
Tallita Araújo Vieira Barros*
Meu primeiro contato com cartel foi numa Jornada de Carteis do Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza. Fui fisgada por esse dispositivo e foi com ele que consegui seguir o “pé teórico” do tripé da formação, quando propus um cartel pelo Fórum de Fortaleza. Uma experiência que marcou meu caminho e abriu as portas para a carta de intenções e o pedido para ser membro desse lugar.
O primeiro cartel acabou antes do prazo acordado e apesar do susto e uma certa frustração, eu já experimentava os efeitos do trabalho daquele dispositivo antes do fim. Através dos textos e mais ainda nos desafios enfrentados para o cartel continuar apontando para uma transferência de trabalho, algo decolou, descolou e impulsionou o meu percurso.
Aí me lancei no segundo, no terceiro, no quarto cartel... até que um deles me fez estranhar o mal-estar que eu vivenciava a cada encontro, a cada pós encontro, depois de alguns meses do início. O tema desse cartel era Identificação e teve início em setembro de 2019. Éramos 4 + 1, a “justa medida”. Cinco colegas que se colocavam como decididos, dispostos ao trabalho.
Fomos por Freud, na Psicologia das massas e análise do Eu, depois no texto D’ecolage, de Lacan; até que decidimos entrar no Seminário da Identificação. Da impossibilidade de continuarmos no Seminário 9, recorremos para textos de comentadores, numa divergência importante de qual caminho seguir. Por fim, continuamos com o texto de Izcovich, “A escolha das identificações”.
Começamos antes da pandemia, então tivemos encontros presenciais com dia e horário pré-estabelecido desde antes do início do cartel e depois passamos para o virtual. Uma cartelizante começou a trabalhar no momento do cartel e mudamos nossa agenda. Os horários ficaram mais difíceis, a presença de todos também. Levamos a questão para discutir e nos interrogamos se a dificuldade tinha relação com o texto. Seguimos. Por fim, estávamos nos encontrando on-line, tarde da noite, com um cansaço que todos expressavam. Mas reiteramos a decisão em continuar. Inclusive eu, pois ainda não era possível admitir para mim, com toda transferência pelo dispositivo do cartel, que queria sair dele.
Chegamos em janeiro de 2021, dezesseis meses de trabalho, quando a-final eu não queria mais saber de Identificação! Só de Escolha. E, finalmente, informei aos colegas sobre a minha saída. A consequência imediata foi o desenlaçamento do cartel que, como um nó borromeano, não poderia continuar se alguém saísse. Três colegas receberam bem a minha escolha e um ficou muito irritado. Não aceitava o fim do cartel. Recebeu a minha saída como algo que iria impedir o trabalho que ele tinha se planejado. Fiquei embaraçada, constrangida com aquela expressão de raiva, efeito de uma decisão minha. Também senti alívio. Imenso. Mas aquela cena do colega com raiva por eu ter saído me fez questão.
Sei que é algo do outro, mas tocou em algo meu. Talvez em comum. Havia uma expectativa de um trabalho com o cartel? O efeito é maior quando o cartel se conclui nos dois anos do que quando dissolve antes? Então retorno ao dispositivo base da Escola Lacaniana. É preciso haver um trabalho fruto dessa experiência, qualquer que tenha sido ela. “Nenhum progresso é esperado senão o de uma exposição periódica a céu aberto dos resultados assim como das crises do trabalho.” (Lacan, 1980b).
Sustentar um cartel pela via do imaginário, sem transferência de trabalho pelo tema é contramão do que propõe Lacan para sua Escola, assim como para o dispositivo. O cartel precisou cair! Foi preciso o ato para a dissolução (Lacan, 1980a). Qual a diferença da dissolução da Escola de Lacan por ele mesmo, em 1980, para uma dissolução de um cartel quando um membro decide que não há ali mais a possibilidade de trabalho?
“Decido-me porque se não me intrometesse ela funcionaria na contramão daquilo para qual fundei (...). É por isso que dissolvo. E não me queixo dos chamados “membros da Escola Freudiana” – antes lhes agradeço, por haver ensinado onde fracassei – quer dizer, me atrapalhei. Esse ensinamento é precioso para mim. Eu o aproveito. Dizendo de outra maneira, eu persevero (je persévère).” (Lacan, 1980a)
Foi preciso questionar o cartel, aceitar sua queda para, fazendo esse texto, me dar conta do meu fracasso. Experimento a importância da publicização dos trabalhos, da Jornada de Cartéis, para que cada um possa se haver com as próprias experiências de trabalho no cartel. E aproveitar.
*Psicanalista membro FCL Fortaleza
REFERÊNCIAS
IZCOVICH, Luis. A escolha das identificações 2011-2012. Caderno de Stylus n 4. Rio de Janeiro: AFCL, 2016.
LACAN, J. (1980a). Carta de dissolução. Revista da Letra Freudiana: Escola, Psicanálise e Transmissão, Documentos para uma Escola, ano I, n. 0, Rio de Janeiro, s/d.
________(1980b). D'Écolage. Revista da Letra Freudiana: Escola, Psicanálise e Transmissão, Documentos para uma Escola, ano I, n. 0, Rio de Janeiro, s/d.
________(1967-68). O Seminário, livro XV, O ato psicanalítico.
________(1962/63) O Seminário, livro X, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LINS, Tatiana e RUDGE, Ana Maria.Ingresso do conceito de passagem ao ato na teoria psicanalítica. Trivium [online]. 2012, vol.4, n.2, pp. 12-23. ISSN 2176-
stylete lacaniano, ano 9, número 26,