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Prelúdio VII
A história de uma metade de sujeito

Alcione Hummel*

 

Entrelinha

 

    Caço a palavra      caço-me

na palavra    ato-me

à palavra

 

                      E me desato        suniato-me      sumo

     na sombra do silêncio

                              da palavra?

(MaxMartins[1])

 

Entre encontros de rios, ilhas e igarapés, estamos no norte do nosso país, na Cidade de Belém que este ano se apresentou para receber nossa comunidade para o XXIII Encontro Nacional da EPFCL-Brasil, cujo tema será A psicanálise entre saber e verdade.

 

Na prática psicanalítica, aposta-se no encontro com um sujeito, o sujeito dividido desde sua constituição entre o saber e a verdade, o sujeito da fenda, da Spaltung. Assim, a condução de uma escuta que se pretenda analítica estará, justamente, atenta ao aparecimento disso que chamamos da abertura do inconsciente, do inconsciente estruturado como linguagem. Como ousamos dizer seguindo a lógica do poeta, uma análise que acontece num caçar das palavras, num atar-se e desatar-se delas.

 

O que precipita a entrada em análise é o sofrimento, que, em muitos casos, culmina numa questão que é formulada e endereçada a um analista. No percurso que aí se abre é necessário que haja consentimento do sujeito ao seu inconsciente, para que seja possível operar determinadas retificações subjetivas e, quem sabe, chegar até a destituição subjetiva no final, transformando o sintoma em algo singular, e que fale em nome próprio.

 Mas, estejamos advertidos de que a entrada não passa de um tempo lógico, que sucumbirá para que um outro surja, aquele que dará lugar à produção de um saber, um saber que advém do singular e que traduz o inconsciente e que permite, para alguns, passar de analisante a analista, de um sujeito às voltas com suas questões para aquele que é causa de desejo.

Então, seguindo essa lógica, o que podemos dizer que ocorre na relação do sujeito com sua “verdade obscura” nesse processo? Podemos dizer que ela se revela, como que num lampejo?

A perspectiva de Lacan é bem outra. O exemplo que ele nos dá é o de alguns pássaros que só são possíveis de serem pegos se colocamos sal em sua cauda. No entanto, o pássaro com que lidamos na análise é a palavra que, por sua vez, não tem pé, nem cabeça, nem cauda. Isso só confirma a dificuldade que é acessar a verdade, pois ela levanta voo: “A verdade levanta voo no momento mesmo em que vocês não queriam mais capturá-la”.  (LACAN, 1969-70/1992, p. 58)

Com isso, Lacan nos faz pensar que o referencial de verdade numa psicanálise não é a que se pretende absoluta, pois só uma parte dela se representa, por se tratar desse sujeito que é dividido desde seu surgimento. A verdade, portanto, refere-se sempre à História de uma metade de sujeito. (LACAN, 1969-70/1992, p. 58)

Assim, se na entrada em análise, o que se acredita é que o saber que livraria do sofrimento está somente do lado do analista, o manejo seguirá em outra direção, pois, como se refere Lacan a respeito de nós, psicanalistas: “[...] somos supostos saber não grandes coisas” (LACAN, 1969-70/1992, p. 54). Só quem poderá dizer algo sobre o sintoma é o próprio sujeito ao se haver com suas questões.

Todavia, para que se dê esse processo complexo que começa com a entrada em análise e gira em direção ao desejo do analista, é preciso que o analista ocupe o lugar de semblante do objeto capaz de causar o desejo do sujeito. Ao psicanalista, não cabe encarnar o UM, o mestre, nem agir com sua pessoa, mas sustentar esse semblante de objeto que permite ao analisante trilhar seu percurso analítico e, assim, construir algo a respeito do enigma que o acompanha.

Espera-se que em uma análise a demanda por um saber pleno possa ser refutada, para que um novo saber seja produzido, um saber que comporte o furo. Esse saber que usa da repetição, do gozo, para se compor, como anuncia Lacan no Seminário O avesso da psicanálise: “o saber como meio de gozo” (LACAN, 1969-70/1992, p. 53).

Nessa forma de pensar a relação entre saber e verdade numa análise, é possível concluir que é ao alcançar que “nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um semi-dizer” (LACAN, 1969-70/1992, p. 53) é que se torna possível ao sujeito consentir com o furo no saber, que é ao mesmo tempo, extração de gozo.

Enfim, sabemos que Lacan tocou na questão da verdade e sua relação com o saber em diferentes momentos de sua obra, e isso é bem mais complexo do que o que se pode dizer por aqui, porém nós teremos a oportunidade de discutir, pensar e elaborar questões a esse respeito durante o nosso Encontro.

Que ele seja profícuo!

Referências Bibliográficas:

 

LACAN, J. (1969-1970/1992) O Seminário livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

[1] 60/35: poesia. Belém: ed.ufpa, 2018, p. 49.

*Psicanalista membro do FCL Belém e AME da EPFCL

stylete lacaniano. ano 9. número 25.

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