Prelúdio IV
Eu, a verdade, eu falo!
Ida Freitas*
[….] não porque a fala não seja o veículo natural do erro, o veículo da eleição da mentira e o veículo normal do mal-entendido, mas porque ela se desdobra na dimensão da verdade e assim a suscita, ainda que para horror do sujeito. Este é o truísmo por excelência […] (LACAN, 2003 [1958], p.181)
O XXIII Encontro Nacional da EPFCL – Brasil desponta como um evento que promete, de saída, convidativas novidades para sua realização. Primeiramente, pela região escolhida, a capital do Estado do Pará, a preciosa Belém, cercada por seus imensos e abundantes rios e pela riqueza da Floresta Amazônica, tão ameaçada pela ganância e ignorância que em muito contrasta com a verdade e o saber dos povos indígenas que nela habitam, na defesa de seus territórios, mas também pelo tema proposto – “A psicanálise entre saber e verdade”. Apesar de tocar o coração da prática analítica e, portanto, sempre nos detemos sobre ela, nunca antes essa temática foi abordada em nossos encontros com tamanha relevância, mais uma vez nos reconduzindo à teoria da práxis a partir desses marcadores. São inúmeras as tonalidades e caminhos possíveis a se trilhar da verdade e do saber no ensino de Freud e Lacan, elegi abordar no presente prelúdio a relação entre verdade e mentira. Em “A psicanálise verdadeira, e a falsa”, (2003 [1958], p.173), Lacan distingue a verdadeira psicanálise da falsa, situando a ideia de uma psicanálise autêntica e uma psicanálise conforme a verdade evidenciada por sua experiência. Indica, assim, aquilo que jamais devemos negligenciar, ou seja, que a psicanálise verdadeira tem seu fundamento na relação do homem com a fala, e é a partir desse eixo que se deve julgar e avaliar seus efeitos, porém não só os terapêuticos, mas aqueles que se apresentam “como revelação de uma ordem efetiva em fatos até então inexplicáveis, na verdade, aparecimento de fatos novos” (2003 [1958], p.173). O que seria da prática psicanalítica se não tivesse o alcance de produzir fatos novos? Ainda que seja um novo saber sobre a verdade recalcada e novas formas de lidar, se virar com o sintoma? O que por experiência, bem sabemos, que chegar aí não é pouca coisa. A partir de sua leitura de Santo Agostinho, Lacan (1983 [1953-54], p. 298) localiza a dimensão da verdade como consequência de se colocar a palavra como causa. À ideia agostiniana de que a palavra pode ser enganadora, Lacan acrescenta que, se a escutamos, esta se afirma como verdadeira. Afirmação que ressalta a importância do ouvir, em especial, a partir da equivocação que comparece nos lapsos, nos sonhos, atos falhos, palavras que tropeçam e, por isso mesmo, podem confessar e revelar a verdade oculta, esquecida, não sabida. Ainda no diálogo com Santo Agostinho, Lacan traz a dimensão do erro enquanto o que “só é definível em termos de verdade” (1983 [1953-54], p. 300) e sua demonstração implicará a contradição, uma vez que é pelo discurso que esta estabelece a separação entre verdade e erro. Ao falar sobre o abandono do filho aos estudos, uma mulher deixa escapar o lapso: “ele está tocando numa bunda de música”. A simples troca de uma letra, u por a, é capaz de trazer à luz para o sujeito, a verdade inconsciente, seu julgamento íntimo em relação ao filho, sua sexualidade e a depreciação de suas escolhas, abrindo as portas para a elaboração de saber. Não é incomum psicanalistas que atendem crianças receberem pais preocupados com a índole de um filho mentiroso, que esconde suas notas, que acusa o colega por seus atos ou, ainda, que inventa aventuras impossíveis como verdades. A preocupação dos pais se fundamenta na moral social, no temor de que seu rebento se torne “mau caráter”. Como diz o verso da letra da música “Tempo rei” de Gil (1984), “mães zelosas, pais corujas, vejam como as águas de repente ficam sujas”. Sem retirar a legítima preocupação e importância com a educação de seus filhos, a psicanálise vai em outra direção, se orienta não pelo moralismo da verdade, mas pela ética do bem dizer, que acolhe a mentira, o ato, a ficção, na transferência, como formas de, através das elucubrações e elaboração de saber, fazer falar a verdade, sobre o desejo, o gozo, o sintoma. Também encontramos no cotidiano de nossa clínica, na fala dos analisantes, o compromisso com a verdade, a intenção dizê-la toda “tenho que falar a verdade, não vim aqui para lhe enganar, nem me enganar, seria perda de tempo e dinheiro”. Através desse dito, porém, um saber se apresenta com relação à verdade, a impossibilidade de dizê-la toda, o que leva o analisante, a se flagrar em suas tapeações e interrogar verdades que jamais havia contestado que acabam por cair por terra. Com relação à verdade e seus destinos em uma análise, o psicanalista em sua prática, está em desacordo com a moral social, com os bons costumes, e até com a filosofia que, segundo Platão (2017, p. 485 b) cultiva a preocupação com a verdade, tendo, portanto, aversão à mentira. Lacan situa o lugar da mentira em sua dimensão de verdade: verdade e mentira como dimensões do enunciado e da enunciação, como podemos localizar através do clássico exemplo freudiano da história de enganação judia do trem, no qual um dos personagens diz a verdade para que o outro pense que está mentindo. “É primeiro como se instituindo numa e mesmo por, certa mentira, que vemos instaurar-se a dimensão da verdade, pois a mentira, como tal, se põe, ela própria, nessa dimensão da verdade” (Lacan, 2008 [1964], p.132). E é nesse caminho de erro, equívoco, contradição, mentira, tapeação no qual o sujeito se aventura em sua trilha analítica, que o analista está em posição de formular sua interpretação: “Você diz a verdade”. Ao dar voz à verdade, Lacan (1998[1956]. p.410) afirma que ela fala por si mesma, “Eu, a verdade, eu falo”, e que esta irá encontrar uma forma para se dizer, ainda que, seja enquanto “eu, a verdade, eu minto”, mentira sobre o gozo, visto que só é possível meio-dizer a verdade enquanto que sua parte não – dita, causa sua miragem. Aproximando poesia (Dichtung) e verdade (Wahrheit), Lacan (1998 [1958]. p. 752) nos relembra que “toda verdade se revela numa estrutura de ficção”, uma outra forma para a expressão “verdade mentirosa”. A operação poética, com sua estrutura de ficção, que se faz através do saber fazer com a letra, que por sua vez tem contiguidade com as leis do inconsciente, é a via pela qual a meia verdade se revela. Como diz o poeta “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente se recorda, e como recorda para contá-la” (Garcia Marques, 2003). A partir do “dizer que não” à insistência do sentido, que “suspende o que o dito tem de verdadeiro” (Lacan 2003 [1972], p.452), podemos inferir que o fim da operação analítica promove dentre outras, a perda das “falsas esperanças da miragem da verdade” (Soler, 2012) e mostra o intraduzível do dizer, que ex-siste aos ditos de verdade, visto que não pertence a diz-mensão [ditmension] da verdade (Lacan 2003 [1972], p.451)
GARCÍA MARQUES, Gabriel. Viver para contar [1928].Tradução de Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 2003 GIL, Gilberto. Tempo Rei. Intérprete: Gilberto Gil. In: ______. Raça humana. Rio de Janeiro: Warner Música Brasil, 1984. 1 LP (41,17 min.). 33 rpm, estéreo. 12 pol. Lado A, faixa 4 (5,09 min.). Regravado em CD em 2003.
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PLATÃO. A República: Livro VI. Tradução E. Gaia. Silveira, Portugal: Bookbuilders, 2017. SOLER, Colette. A querela dos diagnósticos, São Paulo: Blucher. 2018.p.123
*Psicanalista Membro do FCL Salvador e AME da EPFCL
stylete lacaniano. ano 9. número 25.