Prelúdio II
Um saber só navegável em barcas furadas
Oswaldo Costas Martins*
É o saber que circunscreve o real, tanto possível como impossível. Essa é minha fórmula conhecida. (Lacan, Radiofionia,) Todo saber é um fragmento (Freud)
Nos debates cruciais sobre a formação do analista e sobre a Escola, repletos de diferenças e desentendimentos ao longo dos tempos, há um ponto que não pode ser contestado: a necessidade da análise pessoal. Existem muitas razões para tamanho destaque e, considerando que nunca é demais reiterar sua importância, indico neste prelúdio algumas articulações possíveis entre formação do analista, Escola e o tema do Encontro de Belém, em 2023. Dizer que um analista se produz primordialmente no divã é afirmar que sua função depende diretamente do trabalho que terá sido feito com o inconsciente no decorrer de sua análise. Em 1939, Freud enfatizou que “aquilo que o paciente vivenciou (erlebt[1] hat, em alemão) sob forma de transferência, ele não volta a esquecer; isso tem para ele uma força de convicção maior do que tudo o que teria sido adquirido por outros meios” (p. 99). Não estaria concernido aí algo sobre a transmissão também? Se analisarmos sob a perspectiva lacaniana, podemos acrescentar que, em última instância, o que se transmite em uma análise é a falta, algo do objeto causa do desejo. Nessa dobradiça, análise pessoal e Escola se articulam, pois não poderíamos encontrar uma transmissão dessa natureza senão no divã e no dispositivo do passe. A relevância e congruência das teorizações lacanianas tornam-se evidentes aqui, ao se considerar a formação do analista e a Escola intrinsecamente ligadas à ética e à política que balizam uma análise. De fato, podemos encontrar um fundamento compartilhado pela Escola, a psicanálise em extensão e pela formação do analista, que é a psicanálise em intensão. Esta, por sua vez, não pode dispensar a referência à castração. Nesse contexto, o tema proposto pelo Encontro Nacional de 2023 ganha um lugar especial uma vez que o debate que o animará nos conduzirá inevitavelmente à verdade como aquilo que faz furo no saber e impossibilita que ele seja completo. Aliás, Freud já afirmara que Hans “experimentou muito cedo que todo saber é um fragmento e que cada etapa deixa cair um resto não solucionado”. Com Lacan, diremos que a verdade não pode ser toda dita e tudo a que se acessa são fragmentos, semidizeres. O saber é então tomado como buril do real em cuja natureza fragmentária a verdade se inscreve como falha, castração, impossível. Tal perspectiva sobre o saber ecoa na afirmação de Lacan de que há um real na formação do analista. Nesse sentido ela será sempre inacabada já que há uma constância de algo que nunca cessa de não se escrever. Quanto à Escola, talvez ela possa ser chamada, em Belém, de estuário dos restos que se decantam das experiências singulares das análises, esses rios navegáveis apenas em barcas furadas, onde se perde a ilusão de um dia encontrar o todo oceânico.
FREUD, S. Análisis de la fobia de un nino de cinco anos. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1992, Vol. X, p. 83.
FREUD, S. Compêndio de Psicanálise e outros escritos inacabados. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
[1] Sugiro a leitura do texto de Fulvio Marone, A experiência do passe, em Wunsch 12, especialmente no que diz respeito aos significados e uso das palavras Erfahrung e Erlebnis em Freud
*Psicanalista Membro do FCL Fortaleza e AME EPFCL
stylete lacaniano, ano 9, número 25,