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Traumatismo, corpo e segregação: o trabalho com a imagem de Peter chicoteado

Bárbara Guatimosim*
Ricardo Augusto de Souza**

“Nosso futuro de mercados comuns encontrará sua balança em uma extensão cada vez mais dura dos processos de segregação.” [1] Jacques Lacan

 

O corpo de quem vem ao mundo sofre no encontro com o Outro marcas traumáticas: a marca da linguagem, marcas do desejo e do gozo do berço que o recebe. Desse encontro alienante nasce o ser falante, doravante votado a se parir constituindo assim seu desejo, seu gozo e seu dizer próprios. Separar-se é fazer nascer o sujeito em sua diferença. Se este devir ético é desconsiderado vemos surgir as várias formas de segregação, preconceitos e racismos que fazem da diferença algo a ser expulso, eliminado, escravizado, violentado.

 

O campo da separação e o campo da segregação são campos distintos, mas, por vezes, e em nome do poder, podem se misturar. Mas ao convocar o discurso analítico e seu ato visamos operar a distinção no campo que ameaça fazer das diferenças alvo da mais cruel e absurda violência.

 

Em torno da articulação dessas tensões entre campos, entre dimensões conceituais e discursivas, encontramos uma imagem que nos atingiu com um impacto que trouxe a certeza daquilo que não engana:

 (Whipped Peter- 1863)

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Entre os séculos XVI e XIX, o continente americano testemunhou a materialização coletiva dos discursos de segregação levada ao paroxismo.

Da heteronomia imposta às populações africanas à anomia que manteve o tráfico de pessoas escravizadas, no Brasil, à despeito de acordos para inglês ver, são séculos que deixam nefasto legado. Deixam marcas indeléveis. Marcas em corpos personificados, assim como no corpo social.

A imagem, cuja recepção para alguns é causa de mal-estar que lhes impõe a resposta do desvio do olhar, diz disso. Mas, sendo um objeto semiótico, portanto entrelaçado ao linguageiro, guarda em si, a vicissitude de dizer mais, ao mesmo tempo em que encerra desde sempre a impossibilidade de dizer tudo.

Revisitemos a imagem, então.

Do ponto de vista histórico (o studium): estamos em plena guerra da secessão, a devastadora guerra civil estadunidense. Uma conflagração fratricida, na qual o S1 era precisamente a “abolição” a instaurar a cadeia de cacofonia discursiva dos mandatários.

O sujeito, que na fotografia recebeu o pseudônimo de Peter, fora um afro-americano escravizado. Ele vivera em uma plantação de algodão no estado da Louisiana e, lá, além da indignidade da escravidão, sobreviveu à brutalidade e desumanidade do açoite. Ele escapou do cativeiro em março de 1863.

O nome do sujeito que fez a escolha de uma travessia em fuga pela liberdade do cativeiro, e em busca da condição, para muitos de nós tão fundamental que perdida em amnésia, do direito de ocupar-se de seu próprio corpo, era Gordon. Travessia esta não menos brutal do que as violências que sofrera na plantação, segundo o que trazem alguns relatos de sua história.

O caminho para alhures, a jornada para um outro lugar, qualquer lugar, fora também a luta pela sobrevivência à perseguição dos caçadores de escravos. Caminhada e corrida, a pé e descalço, por pântanos e atravessando riachos. Para mascarar o seu cheiro dos cães de caça que o perseguiam, Gordon pegara cebolas da sua plantação, que ele carregava nos bolsos. Depois de cruzar cada riacho ou pântano, ele esfregava seu corpo com cebolas para afastar seu cheiro dos cães. Ele fugiu ao longo de 10 dias ganhando liberdade quando chegou a um acampamento no qual se alistou como soldado no exército antiescravagista. Submetido a um exame médico, Gordon relata o que vivera e, alçando o ato à palavra, despe-se e posa para uma câmera.

Seu ato não foi revelação de algo desconhecido dos outros negros naquele acampamento. Porém, desse ato houve a emergência de uma marca, de uma mobilização e da ressignificação de uma posição política antiescravagista, pelo reconhecimento da população do norte estadunidense do horror na fotografia que viria a ganhar ampla circulação.

Um sujeito que se despe e, posando a uma foto, fala. Discurso e ato, efetivamente trazendo-o a um outro lugar. Lugar de fala e de justa acusação. Foto denúncia, tal como testemunhou o cirurgião do Primeiro Regimento da Louisiana, em carta para seu irmão na cidade que incluiu a fotografia. Ele escreveu:

"Envio-lhe a fotografia de um escravo como ele aparece após um chicoteamento. Tenho visto, durante o período em que estive inspecionando homens para meu próprio e outros regimentos, ‘centenas de tais visões’ — de modo que elas não são novas para mim; mas pode ser novidade para vocês. Se souber de alguém que fale da ‘maneira humana’ em que os escravos são tratados, mostre-lhes por favor esta fotografia. É uma palestra em si."[2]

Um imagem que, passado um século e meio, continua produzindo efeitos.

Com Barthes: "A fotografia sempre traz consigo seu referente."[3]

Não foi possível evitar Roland Barthes em sua "Câmera clara". Qual punctum nos fere ou nos abala nessa fotografia? O que nos anima? Que trabalho impõe? Nossa atenção está no objeto chicoteado ou no sujeito que aí se revela?  Ou seria em ambos?

Aconteceu que um corpo negro e torturado nos tomou em trauma e pôde dizer da segregação, da involução da civilização, para além da condição escravizada do sujeito. Mas há algo mais que surpreende e que a escuta psicanalítica visa e privilegia, pois visar o desejo é quase um vício da escuta psicanalítica: sua força visível, e uma detalhe importante, que não provém do porte físico, mas que se dá a ver na dignidade da postura, a tomada de uma posição: uma decisão política (um desejo) de sobreviver, de viver. Estamos todos de alguma forma com Peter, nessa imagem.

Com Achille Mbembee, na esteira de Deleuze: "O devir negro do mundo"[4] o filósofo sul africano (autor também da Necropolítica) abre com seu livro, "A Crítica da razão negra", a possibilidade de ampliarmos a condição negra, de modo paradigmático, às diferenças que caem na marginalidade e na subalternalidade a partir das ações e pensamentos normalizantes e universalisantes de todo discurso que colonializa, de todo discurso que se quer dominante.[5] " Lembrando com Lacan: "O racismo é um discurso em ação"[6].

Olhando a foto com a psicanálise, não é um corpo dilacerado. Vemos que a força do corpo falante se estende à cicatrização inequívoca do queloide, aquela que não deixa feridas abertas. Essa escrita na pele é aqui o contrário de uma tatuagem: é ela que nos marca, tatua, é ela que nos fere em sua saliência. A carne escrita em relevo grita o que aconteceu... mas fecha o corpo.

Por fim, diante dessa foto ficamos como Freud frente à estátua de Moisés de Miguelângelo, na qual viu um cálculo da ação ou posição a partir das tensões envolvidas, desde um horizonte de um desejo. Sabemos, Peter está sentado, mas prepara-se para levantar-se energicamente e agir. Se ele se permitir a loucura da explosão e se negar ao laço social, ao discurso, ele vai sucumbir, vai morrer. E é este o devir ético – um devir subversivo – a sustentação de um desejo enlaçado à diferença do outro, em última análise, que nos interessa - devir comunidade.

Estamos com Peter nessa imagem, sustentando, dia após dia, o discurso analítico. Para além do espelho, esse tempo estrutural, do qual nasce também o narcisismo, o racismo estrutural, no qual também se apoia a ideologia, a superestrutura que o mantém. Para além do narcisismo, povos originários, afrodescendentes, imigrantes, brancos, pardos, amarelos, vermelhos: misturados como latino-americanos que somos, trabalhadores inaposentáveis, juntos, mesmo sendo “por demais desiguais”[7]: porque nosso tempo exige um amor menos discreto, porque estamos diante dos que se denominam onipotentes e infalíveis: os imbrocháveis.

 

*Psicanalista membro FCL Belo Horizonte

**Psicanalista membro FCL Belo Horizonte

 

 Referências bibliográficas:

BARTHES, Roland. A Câmara clara. Lisboa: Ed.70, 1981.

LACAN. Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

LACAN. Jacques. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 

The liberator : by Garrison, William Lloyd, 1805-1879 ,Yerrinton, James Brown, 1800-1866: Free Download, Borrow, and Streaming : Internet Archive. Acessado em 27/04/2024.

MBEMBE. Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Ed. Antígona, 2014.

Dossier A leitura de Achille Mbembe no Brasil. Leitura de PELBART. Peter Pál.  In Revista Cult , Editora Bregantini nº 240. Novembro/2018.

 

 

[1] Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In Outros escritos, p. 263.

[2] «Picture of a Slave». The Liberator. Boston, Massachusetts. 12 de junho de 1863. p. 2. Indicamos a exploração dessa história feita recentemente pelo filme “Emancipation” (2022), dirigido por Will Smith.

[3] BARTHES, Roland. A câmara Clara, p. 15.

[4] Introdução de seu livro Crítica da razão negra, (2014).

[5] " a condição subalterna reservada aos negros, pouco a pouco, se amplia e aponta para o devir-negro do mundo. Uma crítica da razão negra se faz, portanto, necessária, pois o neoliberalismo, como face atual e devastadora do capitalismo, produz desempregados, indivíduos descartáveis, favelados, refugiados, imigrantes… toda uma horda de seres matáveis, expostos à morte. E, nesse recorte, Peter Pál Pelbart destaca o que deve ser exaustivamente relembrado: a política de extermínio revela a sobrevivência da matriz colonial no contexto contemporâneo e, em especial, no Brasil dos dias atuais".  Peter Pál Pelbart. In Revista Cult, nº 240.

[6] LACAN, Jacques, O aturdito (1972). In Outros Escritos, p. 463.

[7] LACAN, Jacques. A Agressividade em psicanálise (1948). In Escritos p. 126.

stylete lacaniano, ano 9, número 26,

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