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Um pouco de música e psicanálise

Glauco Machado*

Quais são as músicas da minha vida? A mais marcante no jardim de infância, cantada com a professora? E aquela que lembra o meu pai? Tem outra que lembra a minha mãe e aquela outra que me fez ver que eu não era mais criança. A abertura do filme ou a que acompanhava o meu programa de TV favorito e até a do comercial (quem diria?).

A marca de uma música – melodia ritmada, com ou sem palavras – se associa imediatamente a lembranças de um tempo em que eu era alguma outra coisa e me ajuda a cercar o que eu sentia e com quem sentia. Quando mais novo cantava – ou lalava – as músicas em português ou inglês completando os versos com sons que me pareciam coerentes para fechar uma poesia inexistente. Sons sem significado garantido. Só fruição em repetir, imitar, espelhar o cantor e ficar dono daquela música, agora minha, do meu jeito.

Depois, capturado pelo vigor de alguns guitarristas, fui estudar violão e guitarra. Nova fronteira: tocar razoavelmente, de um modo que permitisse que o outro reconhecesse o que eu fazia. Depois tocar melhor, um pouco mais parecido com o que a gravação apresentava. E depois ainda, tocar bem, igual ou melhor do que o instrumentista que interpretou originalmente a composição. Até o ponto em que o corpo respondia, do meu jeito, ao que a música pedia. Uma nova linguagem, enfim. Aprendi o musiquês e consigo conversar com alguns outros musicófonos em uma linguagem que, se não nos permite nos expressarmos vastamente, faz com que nos reconheçamos uns aos outros em alguns contextos. Não em todos, porque o musiquês, ao mesmo tempo que muito amplo, não serve para tudo o tempo todo. Pelo menos não para mim.

E daí veio a psicanálise. E a análise. E a constatação de que muitas vezes entre eu e o outro havia um violão que me disfarçava daquilo que o outro queria ver – e ouvir. Baita escudo! O que você gosta de ouvir? Eu toco, e nós cantamos juntos em mesmerizante júbilo especular. Competente e iludido repletor da demanda do outro. Como não componho, sou um repetidor das músicas que me tocam, que me fazem questão, que me divertem e assim os tempos compartilhados com quem se dispõe a me ouvir nos levam a manter algum nível de fugaz, mas intensa, troca identificatória e também, geralmente, salutares episódios de constatação dos fenômenos da alteridade – afinal, nem todos me entendem no meu dialeto em musiquês.

Mas no consultório, recebo uma citação de versos de música como um trecho de sonho. Ponte para travessia ou atravessamento, moldura para um quadro-cena, fio da meada de uma rede – nova ou velha, veremos. “Sempre choro com essa música”. “Não sei porque essa música sempre entra nos meus pensamentos”. “Hoje, vindo pra cá, fiquei com essa música na cabeça”.

Citando uma passagem importante sobre música, cito excerto de um artigo pesquisado na internet[1] e que já discutimos durante este ano na iniciativa “Coletivo Música e Psicanálise”:

Em jeito de desabafo, no texto que escreveu em 1914 sobre o Moisés de Miguel Ângelo, Freud disse: “Posso dizer que não sou conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo... Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou longo tempo a contemplá-las, tentando apreendê-las à minha maneira, ou seja, a explicar-me a que é que se deve o seu efeito. Onde não consigo fazê-lo, como por exemplo com a música, sou quase incapaz de obter prazer. Uma inclinação mental racionalista, talvez analítica, revolta-se contra o facto de me comover com uma coisa sem saber porque sou afetado ou porque é que me afeta”.

Pareceu-nos que, longe de não se afetar, apenas a impossibilidade ou dificuldade em dar sentido simbólico à experiência já nos apontam o quanto é intrigante isso que ocorre na experiência com a música. Inclusive, nessa experiência do Coletivo Música e Psicanálise, além dos muitos textos (e músicas) que compartilhamos, algumas passagens chamam muito a atenção, como o momento do filme “Filhos do Silêncio”[2] em que o professor de surdos, enamorado de uma moça surda, é solicitado por ela a explicar o que sentia quando ouvia música. Cena marcante em que o ator – William Hurt – criativo e recursivo, expressa aquela mesma “impossibilidade freudiana” de transmitir, encenar, simbolizar o que sentia ao ouvir Bach, Mozart ou Chopin, compositores com os quais se inebriava em sua casa.

Concluo esta reflexão compartilhando uma outra experiência: uma gravação que pode ser conferida neste link[3]. A música escolhida em acordo com o recém-feito amigo e colega nas trilhas da psicanálise, Giovani Malini – instrumentista virtuoso, docente de teoria, harmonia e improvisação –,  foi “Cajuína” (Caetano Veloso – 1979). Ela nos toca por sua letra um tanto hermética em uma primeira aproximação, mas vale mencionar resumidamente a história da composição, relevada a mim especialmente no livro “Verdade Tropical” (2017), que fala de como Caetano condensa a dor da perda do amigo e parceiro Torquato Neto, em 1972, por suicídio, em uma música que lhe ocorre após a visita, anos depois, ao pai de Torquato, em Teresina-PI, em que confraternizam-se, saudosos, tomando uma cajuína[4] na sua casa.

Tocar, cantar e compartilhar uma experiência de gravação, mesmo que à distância de mais de 1.300km que nos separa fisicamente, nos aproximou e pôs em jogo nossas histórias, nossas habilidades, mas também, em última instância, nossos corpos – que é por onde, ao fim, flui a insistente pulsão, entrecortada por alguns fugazes momentos de alívio.

Torço para que gostem.

Aos que não gostarem, torço para que nos demandem novas gravações.

Pois é o que insiste em nós.

* Psicanalista, membro do Fórum Curitiba

[1] https://anabelamotaribeiro.pt/freud-nao-gostava-de-musica-214305

​[2] https://play.google.com/store/movies/details/Os_Filhos_do_Sil%C3%AAncio?id=WW53apLyw18&hl=pt&gl=US

​[3] https://youtu.be/R_0wp7MqdmM

​[4] https://mixologynews.com.br/05/2021/biomas-do-brasil/cajuina-caatinga-nordeste/

stylete lacaniano, ano 8, número 24,

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