Prelúdio VI
Os fantasmas que mentem
Andréa Brunetto*
Estou lendo “Os Cantos de Maldoror”[1], do Conde de Lautréamont, escritor do Século XIX, que morreu tão jovem e foi tão reverenciado, posteriormente, pelos surrealistas. Em seus “Os Cantos…”, tece sua tese do homem como mau, criado por um Deus maldito. Lacan o colocou, junto com George Bataille e o Marquês de Sade como escritores que evidenciaram o gozo da transgressão. 2 O narrador dessa obra escreve que viveu feliz até descobrir que o homem era mau. Se o homem é assim, a culpa é de seu criador: eis sua tese. É um livro como as Confissões de Santo Agostinho às avessas: as maldades dos homens mostram as maldades de Deus. Eis um trecho que saliento aqui: “Velho oceano, os homens, apesar da excelência de seus métodos, ainda não conseguiram, auxiliados por meios de investigação da ciência, medir a profundeza vertiginosa dos teus abismos; tens alguns que as sondas mais longas, mais pesadas, reconheceram como inacessíveis. Aos peixes… isso lhes é permitido; não aos homens. Muitas vezes, perguntei-me que coisa seria mais fácil de reconhecer: a profundeza do oceano ou a profundeza do coração humano.”3 Responderá que é a profundeza do coração humano é a mais difícil. Entre as sordidezes, as crueldades e as ilusões humanas, ele detém-se no oceano como um símbolo do impossível ao homem, a grandeza. “Velho oceano, não haveria nada de impossível em esconderes em teu seio futuras utilidades para o homem. Já lhe deste a baleia. Não deixas que os olhos ávidos das ciências naturais adivinhem facilmente os mil segredos de sua íntima organização: és modesto. O homem se vangloria sem parar, e sempre por minúcias. Eu te saúdo, velho oceano.”4 Para ele, o oceano é um senhor incapaz de ser dominado pelo homem. “O homem diz: ‘Sou mais inteligente que o oceano’. É possível; é até mesmo bem verdadeiro, mas o oceano é mais temível para ele, do que ele para o oceano: isso é desnecessário de ser demonstrado.”5 E conclui que lá embaixo, na direção do desconhecido, deve ser tudo muito grande. Escrevo tudo isso no mês seguinte em que o submersível Titan, da OceanGate, implodiu no fundo do mar, matando seus cinco ocupantes, alguns deles milionários, em busca da trilha marítima ilusória de olhar o Titanic de frente. E implode misturando nas profundezas do oceano, as profundezas dos corações humanos; escrevo assim, parafraseando um pouco Lautréamont. Não havia pensado antes dessa forma o tanto que o navio Titanic está como uma esfinge, no fundo do oceano, como um canto de sereia seduzindo a milhares a olharem-no de frente. Em função desse acidente, voltou à tona tudo o que envolve o Titanic, incluindo aí, o diretor do filme homônimo, um dos mais vistos em todo o mundo cinematográfico até o dia de hoje: James Cameron. Ele, o diretor do filme, desceu em um submersível até o Titanic trinta e três vezes para fazer um documentário sobre esse navio-esfinge, criado para ser o melhor, o maior, o mais luxuoso, símbolo do poderio humano, que afundou no começo de sua viagem inaugural. Cameron conta que investiu milhões do que ganhou com o filme para fazer esse documentário, para unir uma equipe de cientistas, biólogos, mergulhadores, oceanógrafos e, também, contratar um navio de pesquisa russo e dois submersíveis. O documentário começou a ser gravado em 2001 e se chama “Os fantasmas do abismo”. O diretor aparece muitas vezes no documentário, falando sobre o Titanic, encantado com seus mistérios, com um robô andando pelos compartimentos do navio deteriorado: “aqui ainda tem um lustre preservado, eis a cabine de fulano de tal, a cabeceira da cama ainda está lá”, etc. Ele quer saber como está tudo lá embaixo, tenta encontrar detalhes – minúcias, como escreve Lautréamont – que apreendam os momentos finais daqueles que se foram. Como se o iceberg não bastasse como causa. O iceberg foi a cruz no meio do caminho – o impossível do real. Para Lautréamont, o oceano todo o é, um real, algo grandioso a que não adianta os homens se baterem. Lacan afirma que não há nenhum traço de potência no mundo antes da aparição da linguagem. “O que há de surpreendente no que Freud esboça daquilo que é anterior a Copérnico, é que ele imagina que o homem era inteiramente feliz por estar no centro do universo e que ele se acreditava rei. É verdadeiramente uma ilusão absolutamente fabulosa.”6 E Lacan dirá que a única situação em que a verdade é toda é quando diz “Eu minto”. Nessa implosão do submersível e nesse documentário “Fantasmas do abismo” está a verdade toda: “Minto”. Um saber que não se aguentou é o saber da impotência, sustenta Lacan. Assim, podemos entender o porquê a imprensa refletiu o interesse da população do mundo em ficar olhando as buscas por um submersível que desapareceu e, por outro lado, recalcou o navio que afundou no Mediterrâneo com milhares de imigrantes africanos: olhar a morte de frente, essa grande cabeça de Medusa, não é possível. Melhor ficar vasculhando fantasmas: eles estão na mente e mentem. E uso aqui fantasma com dois sentidos: ghost, espectro e, também, fantôme, como Lacan diz em francês, que podemos traduzir como fantasma ou fantasia. Algo que me chamou atenção. O diretor chamou seu amigo, também ator do filme Titanic, Bill Paxton, para participar do documentário. O ator, vinte anos atrás, no começo das filmagens, desceu em um dos submersíveis – é quase um chiste que essas cápsulas que foram recolher imagem de restos, no fundo do mar, chamavam-se MIR, paz em russo – que chacoalhava e virava de cabeça para baixo. Estava só ele e o técnico que o pilotava. Cameron estava em outro submersível, intitulado MIR 2, com o técnico russo que o manejava. E Paxton, assustado, diz que não quer morrer nessa aventura. Não morrerá. Morrerá anos depois, na mesa de uma cirurgia do coração. Enquanto assistimos o documentário é, ele próprio, mais um fantasma. O Diabo é uma fantasia afirma Lacan, para esconder o senhor absoluto que é a morte. O Titanic também o é.
[1] Lautréamont, Conde de. Os Cantos de Maldoror. Tradução, prefácio e notas de Claudio Willer. São Paulo: Editora Iluminuras, 2018.
[2] Lacan, Jacques. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Versão brasileira de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991, p. 246.
[3] Lautréamont, Conde de. Os Cantos de Maldoror. Op. Cit., p. 87.
[4] Ibid., p. 86.
[5] Ibid., p. 88.
[6] Lacan, Jacques. O saber do psicanalista. Seminário 1971-72. Aula de 4 de novembro de 1971.
*Psicanalista Membro do FCL Mato Grosso do Sul e AME da EPFCL
stylete lacaniano. ano 9. número 25.