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editorial

por Kátia Sento Sé Mello*

Contar é muito, muito dificultoso.

Não pelos anos que se já passaram.

Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas

 – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares.

O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido?

Agora, acho que não.

São tantas horas de pessoas,

tantas coisas em tantos tempos,

tudo muito recruzado

(Guimarães Rosa)

 

            Os versos de Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas, remetem ao tema do potente Encontro Nacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil, realizado em novembro de 2023, qual seja, A Psicanálise entre verdade e saber. E porque trazer literatura para falar de Psicanálise? Freud (2010 [1916]) tratou fragmentos poéticos do teatro de Shakespeare em seu Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica. Fragmentos de narrativas de acontecimentos da vida e da literatura nos auxiliam a pensar questões que atravessam os misteriosos caminhos tanto do sintoma quanto dos relatos que alguém faz de si mesmo. Lacan (1998 [1958]), em Juventude de Gide ou a letra e o desejo, por sua vez, aborda a relação entre a verdade e a poesia nos ensinando que a verdade é revelada como uma narrativa ficcional, e, como uma poesia, sua estrutura é não-toda.

Com esta inspiração apresentamos este número especial da Revista Stylete Lacaniano, trazendo para o público os prelúdios apresentados por Analistas Membros de Escola da nossa comunidade, fruto do encontro que se realizou em uma região extraordinária e belíssima do Brasil, Belém, com suas mangueiras, rios, igarapés, arte e rica comida.

A apresentação do Encontro nos foi presenteada por Tatiana Assadi em A psicanálise entre saber e verdade, na qual fala da relatividade da “verdade” no âmbito da sociedade frente ao fenômeno das fake news. Verdade e mentira, ela nos adverte, não são a mesma coisa para o senso comum, a ciência e a Psicanálise.

Que é a verdade?, de Elynes Barros, chama a atenção de que a busca da “verdade sobre si” é o motor que leva os sujeitos a procurarem uma análise. Lacan, no entanto, ensina que o conhecimento de si parece estar relacionado ao saber médico. Na Psicanálise a articulação entre verdade e saber se apresentam como enigma que se estrutura como discursos que comportam a impossibilidade de tudo dizer. Em Um saber só navegável em barcas furadas, Osvaldo Costa Martins destaca que, com Lacan, aprendemos que há um real na formação do analista e, portanto, esta é inacabada por haver algo que não cessa de se escrever. Beatriz Oliveira, em A máquina ou a vida, partindo da pergunta de uma criança sobre como dizer a verdade, conclui que se a escolha do sujeito falante é pela vida continuaremos a querer saber sobre a verdade. Dessa forma, a psicanálise é uma via de resistência. Eu, a verdade, eu falo!, trabalho de Ida Freitas, fala da verdade e mentira como dimensões do enunciado e da enunciação que apresentam os equívocos, os erros, a própria mentira como caminhos por meio dos quais o analista está em posição de elaboração de sua interpretação. Dominique Fingerman destaca que é do psicanalista que depende a “posição do inconsciente”, ou seja, é ele quem coloca em jogo o saber na experiência analítica, reflexão presente em O saber do psicanalista. Andréa Brunetto, tendo como base a leitura de “Os cantos de Maldoror” destaca a interpretação de Lacan sobre o gozo da transgressão. Associando ao fascínio pelo conhecimento dos escombros do Titanic no fundo do oceano, a autora fala do fantasma e da fantasia nas articulações entre saber e verdade do sujeito. Por fim, o trabalho de Alcione Hummel, intitulado A história de uma metade de sujeito, retoma Lacan dizendo que na psicanálise a verdade não se pretende absoluta e que o saber não livra o sujeito do sofrimento, mas está do lado do analista que, com seu manejo, seguirá na direção do tratamento permitindo com que somente o próprio sujeito possa dizer algo sobre o seu sintoma.

Nesta edição, a Galeria traz o artista paraense Mauro Barbosa Corrêa, natural do Igarapé Miri, que cultiva a arte amazônica inspirado no cotidiano das pessoas e nas paisagens ribeirinhas e que nos presenteou com sua obra original, delicada e contestadora. Mauro Barbosa Corrêa, um arte educador, produziu essas obras especialmente para a revista. Suas paisagens, os personagens, humanos ou bichos passeiam tranquilos sobre a superfície das telas, mas são profundos em seus saberes e verdades.

 

*Psicanalista membro do Fórum Rio de Janeiro

styelete lacaniano. ano 9, número 25.

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