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Prelúdio V

O saber do Psicanalista

Conferência em Saint Anne 1971-1972: notas de Leitura

 

Dominique Touchon Fingermann*

 

“Isso que a psicanálise nos ensina, como podemos ensiná-lo?”: isto poderia muito bem resumir o questionamento que acompanhou a leitura em cartel das Conferências de Lacan em Saint Anne “O saber do psicanalista”. A questão que se coloca a nós, mais uma vez, na ocasião de escrevermos este prelúdio é como sermos passadores, aqui e agora, deste “Saber do Psicanalista” (as conferências), questão que nos acompanha no momento do ato do psicanalista, enquanto ele ocorre e, também, quando o submetemos à prova da transmissão da experiência clínica. O desejo do psicanalista, o ato do psicanalista, o discurso do psicanalista, o saber do psicanalista. Qual é a intensão específica que qualifica este artigo definido “o”, que concorda tanto com “o” psicanalista, quanto com o “único” daquilo que se espera que seja posto em jogo para que haja psicanálise (desejo, ato, discurso)? “Para que haja psicanálise” quais são, então, as condições do ato analítico? Citemos Lacan tal como ele a define: “uma psicanálise, tipo ou não, é o tratamento que se espera de um psicanalista. » O que “se” espera “do” psicanalista é da ordem de um desejo inédito, de um ato incalculável, de um discurso novo, tantos operadores que remetem todos a uma posição única. É do psicanalista que depende a “posição do inconsciente” no laço analítico, ou seja, a colocação em jogo do saber, ao qual só o percurso de uma psicanálise dá acesso e que orienta essa “experiência do saber” em que consiste tal travessia. Esta “experiência de saber” começa com algo que escapa completamente àquele que sofre; ele nada sabe sobre isso, mas, por sorte, pode encontrar um bom ouvinte que saberá fazer questão desta ignorância e fazê-la falar. Essa experiência da fala, “a prática do blá blá” dirigida ao analista, transportará o “não quero saber nada disso” inicial no percurso inesgotável da suposição de um saber sobre esse sujeito à deriva nisso que Freud chamou de “suas representações”, e que Lacan qualificará como elucubrações. A transferência é o vetor desta “prática de sentido” que deve encontrar o seu fim. Há, portanto, um percurso, um work in progress, uma travessia, cuja aposta é o fim da análise, ou seja, uma modificação profunda da relação com o gozo e o com o saber (cuja equivalência é notada por Lacan), através da operação do analista, ou seja, a colocação em jogo do inconsciente: o estabelecimento do saber “no lugar da verdade”. A esta travessia Lacan chamou de “Passe”. Passe de mágica, passagem sutil do saber do psicanalisante ao saber do psicanalista. O saber do psicanalisante se orienta a partir do Sujeito Suposto Saber. O ato do psicanalista, no avesso da neurose, favorecerá o topar sobre seu impasse até que, eventualmente, o analisando possa sustentar esse “saber não sabido” (insu) sem recorrer às representações, às elucubrações, às ficções, da verdade mentirosa que vetorizaram seu endereçamento ao Outro. Este saber causa horror porque, ao contrário do suposto saber, não tem correspondente no Outro. Além disso, ao desatarraxar todas estas teorias sexuais infantis que a neurose urdiu e confinou nos limites do fantasma, ele remete aquele que fez este percurso à sua solidão, troumática[1]. É nessas conferências que Lacan conecta o psicanalista com o que ele chama de “os pais traumáticos”, aquele cuja alteridade o fará topar com a solidão. No rescaldo destas Conferências em Saint Anne, Lacan, nos seus Seminários XX e XXI, esforçar-se-á por especificar melhor este novo saber que ele, enfim, chamará de “inconsciente real”, até finalmente fixá-lo como “l’insu que sait de l’une bévue”[2] em 1978: a resposta de Lacan ao Unbewusst freudiano. “O saber do psicanalista”, as conferências, abre, portanto, este momento de concluir do ensino de Lacan. Estas sete conferências são particularmente originais no seu estilo e no seu endereçamento, ainda que, quanto mais o ano avançava, mais os enunciados das Conferências de Saint Anne e do Seminário “…ou pior” se misturavam, respondendo-se uns aos outros, pois na verdade, é do que se trata de adquirir em uma análise, o saber que, de fato “há do Um” e é bem isso que causa o horror. Lacan apresenta-se a este público em Saint Anne, como se quisesse apresentar um inventário do seu ensino em 1972, no limiar da virada borromeana que aqui se anuncia. Ele faz, portanto, um balanço dos conceitos necessários à experiência e, no decorrer de suas afirmações, no espaço de um lapso ou de um neologismo, ele joga de repente o que se esforça para dizer e que não pode mais ser esquecido “para que haja psicanálise”. A maior parte dessas “invenções” de saber, até então inéditas, deixarão seu traço, traçarão sua rota como conceitos incontornáveis do ensino de Lacan e da práxis analítica: lalíngua, falasser, matema, réson[3], o (a)muro, o Dizer. Ademais, o Seminário XIX fará ressaltar nas Conferências de Saint Anne os achados da formalização lacaniana em curso: o nó borromeano, as fórmulas da sexuação, o Há do Um. A Nota Italiana de junho de 1972 (o horror de saber), a escrita do Aturdito publicado em julho, também ressoam nas linhas e entrelinhas deste “Saber do Psicanalista”. Há nestas páginas uma precipitação do que Lacan desenvolverá em seguida até o final de seu ensino, mas diríamos que, aquilo que o psicanalista deve saber, está aqui condensado e que todos esses conceitos até então inéditos, respondem, cada um à sua maneira, à questão colocada: o que é “o saber do psicanalista”? O saber do psicanalista é que “Há do Um” e seu gozo intransmissível; É, portanto, que: Não há relação sexual e como as fórmulas da sexuação subsequentes escrevem o não- tudo; É saber da lalíngua da qual emerge o poema que é o inconsciente de cada pessoa e o matema; É o saber: o nó borromeano; É saber da ex-sistência do Dizer. Todas essas formulações remetem ao mesmo ponto de partida e de partição. A intensão da psicanálise e, portanto, a sua extensão, dependem deste saber, que somente a experiência de uma analise garante e firma com condição do ato analítico.

 

[1] Nt.: neologismo que, em francês remete ao furo “trou” e ao “traumático”.

[2] Nt.: título do seminário de Lacan que optamos por deixar no original devido a polissemia que este comporta.

[3] Nt. : neologismo que conjuga raison (razão) e rèsonne (o que ressoa)

 

 

 *Psicanalista Membro do FCL França e AME da EPFCL

stylete lacaniano. ano 9. número 25.

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