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Prelúdio III

A máquina ou a vida

 

Márcia Penteado Beatriz Oliveira

Que digam que um computador pense, tudo bem, mas que ele saiba, quem vai dizer isso? (Lacan, 1972, p.192)

 

 

A questão de onde parto para este prelúdio, remete a uma fala que escutei de uma criança que um dia me pergunta: “como posso saber quem fala a verdade? Meu pai ou minha mãe?” Assim formula essa criança seu impasse maior, que o traz à análise e o faz sofrer. Desencontro entre Um e Dois, entre o sujeito e o Outro. Outra maneira de dizer: como resolver o fato de que não há relação? Eis a questão: de que verdade um sujeito fala em psicanálise? O que se pode saber disso? Na primeira lição de seu Seminário XX, justamente onde Lacan tratará de um modo de gozo não todo inscrito na função fálica, em que se formula a disparidade entre os modos de gozo, ele apresenta a seguinte fala: “eu não quero saber de nada disso”, referindo-se à posição analisante que o sustentava em seus seminários. Ora, o que não se quer saber? Que no campo do gozo, nem tudo passa pelo significante? Que não há complemento para o amor? Que a única verdade posta para todo ser falante é o furo que a linguagem impõe? Não por acaso, ao tratar do “Saber do psicanalista”, Lacan já nos apresenta a tese posta no título de nosso próximo Encontro Nacional: “articulei que essa fronteira sensível entre a verdade e o saber, é precisamente aí que o discurso analítico se sustenta”. (Lacan, 1971, p.15) De saída, isso já nos convoca, enquanto psicanalistas, a nos situarmos na contramão dos discursos que buscam uniformizar os modos de gozo, que situam o saber acéfalo no lugar de agente colocando o outro como objeto (Discurso Universitário) ou ainda, do Discurso Capitalista que forclui o laço social na medida em que o sujeito, enquanto consumidor, encontra nos gadgets ofertados pelo mercado a saturação para sua infelicidade e mal-estar. Ora, como sustentar um discurso avesso à promessa de bem-estar e felicidade que essa cultura capitalista tão astuciosamente implantou? Aí podemos situar a radicalidade de Freud ao propor a “talking cure” como única via de tratamento para o mal-estar humano. Sustentado pelo amor de transferência, o sujeito recupera na função da fala, aquilo que permite saber sobre a ficção da verdade que o sustenta. Assim podemos entender porque Lacan tratará o saber como “meio de gozo”: “A fundação de um saber é que o gozo de seu exercício é o mesmo de sua fundação” (Lacan, 1972/2010, p.192). Ou seja, somente pela experiência da fala, que se adquire um saber sobre esse lugar da verdade. Ora, acho esse ponto fundamental para entendermos isso que Lacan anuncia nesta mesma lição do seminário: “Que digam que um computador pense, tudo bem, mas que ele saiba, quem vai dizer isso?” (Idem) Ainda que se suponha que uma máquina produza conhecimento, ela nada pode saber dessa própria experiência, desse próprio exercício de produção. Aliás, um ótimo ponto de partida para se colocar em questão os efeitos das Inteligências Artificiais, a “bola da vez” a ser consumida como solução para o impossível da linguagem dizer tudo. Dessa forma, o que poderia fazer resistência à forclusão do laço? Estaremos sendo otimistas demais em apostar que a psicanálise, por sustentar que a única forma de saber se dá pela via desse laço transferencial e de fala, poderia ser uma saída? Quero crer que, seguindo Freud no “Mal-estar da cultura”, o homem continuará sofrendo de sua impotência diante do poder da natureza, da fragilidade de seu corpo e da insuficiência das normas que regulam os vínculos entre os homens (Freud, 1930, p.85). Resta como questão se os seres falantes continuarão a buscar no laço com o outro abrigo para este mal-estar, como dizia Freud, ao invés de gozarem com suas máquinas. Entre a máquina ou a vida, talvez possamos apostar que a escolha forçada do sujeito continuará sendo pela vida. Se essa for a escolha, os seres falantes continuarão a querer saber sobre a verdade e assim, a psicanálise continuará sendo uma via de resistência.

 

Freud, S. – (1930) El malestar em la cultura. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1988, vol 21.

 

Lacan, J. (1971-1972) O Saber do Psicanalista. Publicação para circulação interna – Centro de Estudos Freudianos do Recife.

*Psicanalista Membro do FCL São Paulo e AME EPFCL

stylete lacaniano. ano 9. número 25.

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